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Francinni Ferreira Pereira

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A RESPONSABILIDADE CRIMINAL NO BRASIL

Atualizado: 28 de dez. de 2023

OBSTETRIC VIOLENCE AND CRIMINAL LIABILITY IN BRAZIL





Como citar esse artigo:


PEREIRA, Francinni Ferreira; PAIVA, Jaqueline de Kassia Ribeiro de. Violência obstétrica e a responsabilidade criminal no Brasil. Revista QUALYACADEMICS. Editora UNISV; v.2, n.1, 2023; p. 21-43. ISBN 978-65-981660-0-7 | D.O.I.: doi.org/10.59283/ebk-978-65-981660-0-7


Autoras:


Francinni Ferreira Pereira Graduanda do Curso de Direito da Universidade de Gurupi – UNIRG, em Gurupi-TO. Endereço eletrônico: francinnifpereira@unirg.edu.br


Jaqueline de Kassia Ribeiro de Paiva

Advogada e professora. Doutorada em - Direito – Universidade Estácio de Sá - RJ (2023). Mestre em Gestão de Políticas Públicas - UFT (2019), Especialista em Desenvolvimento Sustentável e Direito Ambiental - UNB (2005) e Ciências Criminais - ATAME (2021).



RESUMO


A violência obstétrica surge como um tema de relevância no cenário jurídico brasileiro, pois engloba práticas que violam os direitos fundamentais e reprodutivos das mulheres ao longo de toda a gestação, parto e pós-parto. Ela se manifesta por meio de atos abusivos, desrespeitosos e negligentes por parte dos profissionais de saúde. A análise atual baseou-se em um levantamento bibliográfico, visando à obtenção de fontes primárias para elucidar as características centrais desse fenômeno, e teve como objetivo discutir a problemática da violência obstétrica sob a perspectiva criminal, na conjuntura nacional. Neste contexto, buscou-se identificar os padrões de manifestação desse fenômeno, suas consequências e o impacto que tem sobre a vida das mulheres. A violência obstétrica representa um desafio significativo no campo da saúde reprodutiva no Brasil. A pesquisa destacou a complexidade inerente a essa temática, enfatizando a necessidade de reconhecimento e ação imediata, já que a conduta violenta não só infringe os direitos das mulheres, mas também pode resultar em graves implicações físicas e psicológicas para as gestantes e parturientes.


Palavras-chave: Violência Obstétrica. Responsabilidade Criminal. Estado de Vulnerabilidade.


ABSTRACT


Obstetric violence emerges as a topic of significance in the Brazilian legal landscape, as it encompasses practices that violate fundamental and reproductive rights of women throughout pregnancy, childbirth, and postpartum. It manifests through abusive, disrespectful, and negligent acts by healthcare professionals. The current analysis was based on a bibliographic survey, aiming to obtain primary sources to elucidate the core characteristics of this phenomenon and aimed to discuss the issue of obstetric violence from a criminal perspective within the national context. In this setting, there was an attempt to identify the patterns of this phenomenon, its consequences, and its impact on women's lives. Obstetric violence presents a substantial challenge in the field of reproductive health in Brazil. The research highlighted the inherent complexity of this subject, emphasizing the need for immediate recognition and action, as violent behavior not only infringes on women's rights but can also lead to severe physical and psychological implications for pregnant and birthing women.


Keywords: Obstetric Violence. Criminal Liability. Vulnerable State.


1. INTRODUÇÃO


A questão da violência obstétrica tem ganhado uma relevância cada vez maior no Brasil. Conforme será exposto adiante, essa problemática refere-se a práticas que vão desde intervenções médicas desnecessárias até agressões verbais e físicas por parte dos profissionais de saúde, durante o processo de qualquer atendimento médico e hospitalar no contexto da gestação, parto e pós-parto. No cenário brasileiro, a violência obstétrica representa uma clara violação dos direitos das mulheres gravidas e tem sido alvo de grandes esforços para promover um sistema de saúde mais justo, bem como, uma responsabilização criminal mais condizente com a gravidade da conduta praticada e a importância de se considerar a situação de maior vulnerabilidade da vítima quando se trata dessa violência específica.


No que se refere à responsabilidade criminal, o Brasil enfrenta desafios significativos na responsabilização dos profissionais de saúde envolvidos em casos de violência obstétrica. Apesar da existência de leis que visam proteger os direitos das mulheres, a aplicação dessas leis e a responsabilização efetiva dos infratores têm sido inconsistentes. Isso pode ser atribuído a diversos fatores, incluindo a falta de conscientização sobre o tema, a cultura de impunidade e a dificuldade em reunir provas sólidas em casos de violência obstétrica, ou até mesmo a seletividade no sistema penal, já que grande parte dos autores são médicos.


Para abordar essa questão complexa, é fundamental fortalecer o sistema de justiça e promover a conscientização sobre os direitos das mulheres durante a gestação. Isso envolve a capacitação de profissionais de saúde, a criação de mecanismos de denúncia seguros e eficazes, e o incentivo à educação pública sobre os direitos reprodutivos. As autoridades competentes precisam assumir a responsabilidade de investigar e processar casos de violência obstétrica de forma rigorosa e imparcial.


A violência obstétrica é um problema sério no Brasil que requer uma abordagem multifacetada. A responsabilidade criminal dos envolvidos nesses casos deve ser parte integrante dessa abordagem, mas também é importante considerar medidas preventivas, educacionais e de conscientização para garantir que as mulheres tenham um parto digno e respeitoso, livre de qualquer forma de abuso ou violência.


A pesquisa realizada baseou-se em um levantamento bibliográfico que buscou fontes primárias para compreender as principais características do tema. Esse método permitiu uma abordagem gradual e equilibrada do assunto, à medida que os paradigmas foram sendo aprofundados, culminando em um conhecimento mais consolidado sobre a violência obstétrica. O objetivo deste estudo centrou-se na discussão da problemática da violência obstétrica sob o aspecto criminal, na conjuntura de âmbito nacional.


2 REVISÃO DE LITERATURA


2.1 VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA


A violência obstétrica se traduz desde a demora na assistência/atendimento, recusa de internações nos serviços de saúde, negligência, recusa na administração de analgésicos, como nos maus tratos físicos, verbais ou psicológicos, desrespeito à privacidade e liberdade de escolhas, realização de procedimentos coercitivos e detenção de mulheres e seus bebês nos ambientes de saúde, dentre outros. Insta mencionar, ainda, a privação do direito de a mulher ter um acompanhante durante o parto (MENEZES, 2020).


Para D’Oliveira, Diniz e Schraiber (2002 apud ZANARDO et al., 2017), a violência obstétrica se expressa por meio de quatro tipos de violência, qual seja a negligência (quando há omissão do atendimento), violência psicológica (quando dispensado tratamento hostil, ameaças, gritos e humilhação intencional), violência física (diante da negativa em aliviar a dor quando há indicação técnica) e a violência sexual (mediante a prática de assédio sexual ou mesmo estupro).


Além das acima citadas, Kopereck et al. (2018) menciona, ainda, a violência institucional, que é aquela praticadas em entidades públicas, ocasionada pela ação ou omissão dos profissionais prestadores de serviço de saúde obstétrica, e a violência moral, quando o ato praticado está mais relacionado às próprias condutas dos profissionais que com as regras da instituição.


A violência também se expressa no uso inadequado de tecnologias, intervenções e procedimentos desnecessários, com eventuais riscos e sequelas à saúde da mulher parturiente e/ou de seu filho (D’OLIVEIRA; DINIZ; SCHRAIBER, 2002 apud GUIMARÃES; JONAS; AMARAL, 2018).


Contudo, as agressões são pouco abordadas, uma vez que grande parte das mulheres não reconhecem as condutas como violadoras, simplesmente por acreditarem que o procedimento está correto (GARCÍA; DIAZ; ACOSTA, 2013 apud ZANARDO et al., 2017). Além disso, a inexistência de legislação específica acaba prejudicando maior reconhecimento acerca do tema e, certamente, a punição daqueles que praticam tais atos (ADAMI; GUIMARÃES, 2021). Acoplado a isso, observa-se a jurisprudência ainda não firmou entendimento sobre o tema (MOREIRA, 2020).


Delimitar a apropriação do corpo da mulher e o processo de parto, torna-o mórbido e transforma a implementação de intervenções e medidas médicas desnecessárias, não permite que a mãe participe ativamente do processo decisório sobre seu corpo e padrões de parto, falha aplicar informações para a tomada de decisão em que se aplicam protocolos assistenciais que impeçam seus movimentos, expressões e sua autonomia nesse sentido, impedindo a fisiologia do parto normal (SILVA et al., 2020).


Qualquer apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, se manifesta como um tratamento desumano, transformando processos naturais em patológicos, resultando em perda de autonomia e livre decisão da vítima. (DA SILVA et al., 2021).


Esta é uma questão que viola os direitos humanos e reprodutivos da mulher no contexto da atenção ao parto e puerpério em serviços de saúde públicos ou privados, incluindo direitos à igualdade, informação, integridade, saúde, autonomia reprodutiva, direito à não discriminação (MARINHO et al., 2021).


Nessa perspectiva, a compreensão etimológica de autonomia está enraizada na própria independência do indivíduo. A capacidade de governar a própria vida usando seus próprios desejos e vontades, liberdade para usar suas próprias leis, liberdade moral e intelectual; assim, suas origens linguísticas testemunham a ideia de liberdade de escolha e a capacidade de se exercitar ativamente (CASTRO; ROCHA, 2020).


A palavra liberdade representa os limites de fazer ou não fazer nada, escolha; independência; o direito de proceder como bem entendermos. Dessa forma, a autonomia e a liberdade da mulher são perdidas e reencontradas durante a internação hospitalar, pois o desrespeito generalizado a seus direitos permeia o comportamento e a atuação dos profissionais de saúde nas maternidades. (SILVA et al., 2020).


A questão da violência obstétrica tem sido objeto de diversos estudos que apontam o uso arbitrário de sua autoridade e controle sobre o corpo e a sexualidade pelos profissionais de saúde como uma das causas raízes da violência institucional contra a mulher. As diferentes conotações de violência que surgem nos serviços de saúde incluem negligência, discriminação social, violência verbal (tratamento rude, ameaças, repressão, gritos, humilhação intencional) e violência física (inclusive não uso de analgésicos quando instruídos tecnicamente) e abuso sexual (ISMAEL et al., 2020).


Mais importante ainda, procedimentos e intervenções são desnecessários dadas as evidências científicas atuais. Assim, os efeitos potencialmente prejudiciais dessas práticas levaram a uma série de intervenções, como a medicalização do trabalho de parto, visando à aceleração do trabalho de parto, como acompanhamento do trabalho de parto, ruptura amniótica precoce, episiotomia e uso de força (ISMAEL et al., 2020).


O uso inadequado da técnica traz uma série de riscos e sequelas, pois o uso de fórceps aumenta o risco de lesão perineal, que por sua vez leva à incontinência anal e urinária, disfunção sexual, dor pós-parto e risco de infecção e dificuldades de amamentação. A episiotomia, por outro lado, pode levar a complicações que vão desde dor no local até cicatrizes e deformidades que requerem correção cirúrgica (CARNIEL; VITAL; DE SOUZA, 2019).


A assistência ao trabalho de parto e parto é caracterizada por intensa medicalização, intervenções desnecessárias e potencialmente iatrogênicas e comportamento abusivo. Nesse contexto, permanece o isolamento da gestante de sua família, a falta de privacidade e o desrespeito à sua autonomia, uma combinação de fatores que levam ao aumento do risco materno e perinatal. A medicalização do corpo feminino é entendida como um meio social de vincular questões políticas ao cuidado pessoal do corpo feminino, regulando, regulando e gerenciando aspectos da vida relacionados à reprodução feminina. A medicalização do parto é uma forma especial de medicalização social (PINTO, 2020).


O fenômeno da medicalização social é definido como a ampliação do papel da medicina em todas as áreas da vida social, resultando em mudanças comportamentais que podem constituir violência contra as pessoas. Este é o resultado da invasão da esfera da vida social pela burocracia, tecnólogos e medicina monopolista (DE SOUZA et al., 2021).


Naturalmente, no imaginário social, o parto é sinônimo de dor e pode ser potencializado por medidas que o tornam iatrogênico, como: solitário, imobilização, abuso de ocitocina, episiotomia, fórceps e realização de técnicas não recomendadas. Quando for necessário um parto vertical, force a mãe a dar à luz em decúbito dorsal com as pernas elevadas; evite o contato pele a pele imediato entre o bebê e a mãe sem motivo médico, evite a união precoce e evite que o bebê Possibilidades de aclimatação ou amamentação logo após o parto; alteração do curso natural do parto de baixo risco por meio de técnicas aceleradas sem necessidade de consentimento livre, explícito e informado da mulher; e, onde o parto natural for possível, parto por cesariana sem a autorização expressa e consentimento livre informado (DE OLIVEIRA et al., 2021).


A assistência institucional ao parto, como violação dos direitos humanos e reprodutivos da mulher, constitui sátira, insultos, ameaças, humilhações, manipulação de informações e negação de assistência, desrespeito às suas necessidades, como desrespeito à dignidade humana, além do uso de tecnologia inadequada, também configuram práticas comportamentais que facilitam relações de poder desiguais (LEMOS et al., 2019).


No entanto, tendo em vista que o objetivo das unidades de saúde é atender ao cidadão, associado às características protetoras dos indivíduos, a violência no parto muitas vezes passa despercebida. A violência e o abuso, principalmente quando se trata do uso da tecnologia, é bastante complexo e difícil, levando a muitas questões que pretendemos explorar mais a fundo na construção de nossa análise de dados (SOUZA et al., 2019).


Aborda um problema que os profissionais de saúde cometem na gravidez, parto e aborto espontâneo, incluindo a negligência no atendimento, a adesão e a qualidade da assistência prestada. Os autores sugerem que os fatores que contribuem para esse fenômeno incluem o processo de socialização dos profissionais de saúde, tanto durante a formação e formação profissional, quanto em suas atividades nos serviços de atenção ao parto, além do aumento da violência organizacional e estrutural dos serviços e nossa crueldade na sociedade (LEAL et al., 2018).


São quatro as formas de violência que foram estudadas em foco, categorizadas como: Negligência; Violência verbal; Violência física, que se inclui nesta categoria quando as mulheres solicitam analgésicos, ou quando orientadas tecnicamente a não usar analgésicos; Violência Sexual. Esses fenômenos reais são descritos como violações de direitos humanos que prejudicam os direitos das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos inerentes ao processo reprodutivo (CARNIEL; VITAL; DE SOUZA, 2019).


Dados semelhantes foram encontrados no estado de Mato Grosso, estudo qualitativo das vivências de mulheres de parto normal em instituições públicas do entorno de Cuiabá. As autoras do estudo destacam a violência implícita no atendimento à mulher e destacam comentários autoritários e grosseiros por parte dos profissionais de saúde, incluindo médicos e enfermeiros, mesmo entre profissionais do sexo feminino que dão à luz normalmente (DA SILVA et al., 2021).


No entanto, isso não sugere que a compreensão do universo feminino seja unida, mas que emerja a dominação e a hegemonia dos profissionais de saúde. Além de atos como grosseria e violência psicológica, abrigar mulheres por posições favoráveis às mulheres, exames repetidos, experiências temerosas da dor do parto, medo da morte, são todos tratados pelas empresas médicas, como um evento seguro sem fins lucrativos (MENEZES et al., 2019).


A falta de privacidade é vista como um importante fator de desrespeito, causando constrangimento, vergonha e inibição na realização de procedimentos como o exame vaginal, além do exercício de poder e autoridade sobre questões de participação no processo de parto, incluindo os seguintes fatores na presença dos profissionais de saúde frustração, fraqueza, submissão e impotência, e são reforçadas na medicina para permitir que as mulheres aceitem e permaneçam em silêncio. Atendimento mecânico, distante, arrogante, técnico sem empatia e engajamento, além da falta de comunicação e informação da equipe de saúde, prejudica o atendimento eficaz (MENEZES et al., 2019).


Dessa forma, o profissional de saúde toma o poder dos corpos das mulheres, mostra o que está prestes a fazer e até invade seus corpos sem sua permissão, o que viola sua privacidade, o que é feito por entidades com normas e procedimentos de atendimento e legitimidade do serviço legalmente constituída em nome do profissional. Essa violência é realizada por meio de técnicas e atos de poder sobre o corpo materno, sempre olhando para o ventre e esquecendo o marido grávido e sua família (MATOSO, 2018).


Além de vivenciar o descuido como forma de se expor à intimidade e à sexualidade durante o parto, sendo contido e silenciado, é um corpo completamente controlado, tanto em seus aspectos externos quanto em sua estrutura interna. Então, agora que o corpo está esvaziado, a mulher está abandonada, o corpo vazio tem uma espécie de descuido que parece que ninguém mais se interessa, uma nova estética é reproduzida, e a mulher se torna solitária e abandonada (MARINHO et al., 2021).


Classe e etnia são um fator significativo no uso de intervenções desnecessárias no Brasil. A prevalência de parto cesáreo foi mais pronunciada entre as mulheres de classe média alta no setor privado, enquanto os partos vaginais com episiotomia foram mais comuns no setor público. A predominância dos partos vaginais nos serviços públicos foi afetada pela implementação do Programa de Humanização do Trabalho e da Fertilidade, que impõe certos controles institucionais sobre as cotas de parto normal (PINTO, 2020).


Segundo a Organização Mundial da Saúde, um número crescente de relatos negativos em todo o mundo advém de experiências maternas ao longo da gravidez, principalmente durante o parto e o puerpério, quando as mulheres estão mais vulneráveis. Tais relatos evidenciam um padrão contínuo de abuso, desrespeito, abuso e negligência na assistência ao parto nas unidades de saúde (MACHADO, et al, 2016).


O termo “violência obstétrica” é utilizado para vincular diversos comportamentos dos profissionais de saúde em relação à mulher que se referem à violência, danos, sequelas, maus-tratos e total desrespeito ao seu estado físico, emocional, verbal e social, principalmente durante o trabalho de parto. Sem parceiro devido a procedimentos desnecessários e muitas vezes prejudiciais, como episiotomia, contenção no leito pré-natal, enemas, tricefalotomia e (quase) ocitocina de rotina, dos quais a cesariana redundante desnecessária é particularmente proeminente (MORAIS, et al, 2016).


Tal violência no campo da obstetrícia é entendida como qualquer conduta dos profissionais de saúde que afete o corpo feminino e o processo reprodutivo, manifestando-se como cuidado desumanizante, intervenções abusivas, medicalização e transformação patológica do processo. Deve ser o mais natural possível, ou seja, respeitando os aspectos físicos do parto (OLIVEIRA; MAZZAIA; MARCOLAN, 2015).


As mães são atendidas em um ambiente hospitalar hostil cercado por atos de violência verbal. Portanto, o hospital preconiza rotineiramente o isolamento das mães dos familiares, contato vaginal repetido, uso indiscriminado de ocitocina, dieta zero, depilação vulvar e perineal e restrição de atividades. As intervenções geralmente se justificam pelo fato de que somente o conhecimento médico pode intervir diante das complicações do parto, reduzindo a mortalidade materna e neonatal (PILATTI, 2012).


Contrariando as recomendações da Política Humanizada do Pré-Natal e Parto (PHPN), a política visa implementar medidas e procedimentos conhecidos para facilitar o acompanhamento do trabalho de parto e parto e evitar intervenções desnecessárias que, embora tradicionalmente implementadas. Não há benefício para as mulheres ou recém-nascidos, e tende a colocá-los em maior risco (QUEIROZ; SOUZA, 2012).


Considerando a classificação da OMS de utilidade, eficácia e ausência substancial de efeitos prejudiciais dos comportamentos e práticas de parto normal, nota-se a presença de práticas frequentemente utilizadas de forma inadequada. Apesar de amplamente divulgadas pela Organização Mundial da Saúde como nocivas ou ineficazes, existem diversas práticas frequentemente utilizadas pelos profissionais de saúde que devem ser eliminadas da assistência ao parto, assim como aquelas utilizadas de forma inadequada, que, se empregadas, podem impactar negativamente na experiência do parto e são diretamente ligadas à violência obstétrica Relacionada, além de prejudicar o acompanhamento fisiológico, predispõe a mãe a complicações (ROSADO; RUSSO; MAIA, 2015).


Dados da pesquisa nacional do Nascido no Brasil mostram que apenas 5% dos partos vaginais na assistência obstétrica no Brasil ocorrem sem intervenção. Vinte e cinco por cento das mulheres relataram ter sofrido algum tipo de agressão durante a gravidez, pré-natal ou parto. Tais agressões dos profissionais de saúde vão desde a condenação, humilhação e gritos até a recusa em aliviar a dor, realização de exames dolorosos e desnecessários, insultos grosseiros e preconceito discriminatório contra classe social ou cor da pele (SABÓIA; PONTE, 2013).


Assim, percebe-se que a violência no parto parece estar conscientemente presente em todos os serviços de saúde citados nestes estudos, com características e padrões diferenciados, dependendo da especificidade de cada serviço e região estudada. Portanto, o fenômeno em questão possui evidências científicas que, além da prática de institucionalização dos serviços médicos, constitui um processo de abolição dos direitos da mulher durante o parto (MOURA et al., 2018).


2.2 O RECONHECIMENTO DA VULNERABILIDADE DA GESTANTE EM CASOS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA


Considera-se a gravidez uma situação ímpar na vida de uma mulher, pois traz modificações fisiológicas, psicológicas, sociais e culturais com o objetivo de proporcionar condições para o adequado crescimento e desenvolvimento fetal, em equilíbrio com o organismo materno, como também repercute de forma expressiva no dia a dia da gestante (MEIRELES; NEVES; CARVALHO, 2015).


A gestação influencia alterações na percepção da imagem corporal, a diminuição no nível de energia, a presença de sintomas fisiológicos os desconfortos corporais, os novos papéis sociais, a qualidade do relacionamento, as alterações de humor, a necessidade de uma nova adaptação física, emocional, existencial e também sexual.


Além das mudanças físicas, mesmo as gravidezes mais “normais” apresentam modificações psicológicas. Toda mulher grávida experimenta certa angústia que se exprimiria nos sonhos, nos problemas com o sono, nos temores conscientemente ditos. Também seriam, as modificações do paladar, os desejos, fases de irritabilidade, de instabilidade de humor com passagens rápidas dos sorrisos às lágrimas. Poder-se-ia ver a alternância de períodos de ciúmes e indiferença e desregramento dos apetites sexuais, além de uma certa lentificação de ideias e apatia levando a sonolência (RANCUREL; MARMIE, 1975).


Na gestação, os níveis de estrógeno e progesterona são superiores àqueles vistos nas mulheres fora do período gestacional e esse fator pode estar envolvido nas alterações do humor que ocorrem nessa fase (Bloch et al. 2003).


Assim, percebemos que a gravidez é um processo fisiológico que envolve alterações profundas, cujas repercussões vão se fazer sentir física, psíquica e socialmente, pois envolve necessidade de reestruturação e reajustamento em várias dimensões.


A etimológica da palavra vulnerabilidade refere-se ao latim vulnerare - ferir, lesar, prejudicar – e bĭlis – suscetível a –, a qual teria dado origem à palavra vulnerabilidade. Segundo a Bioética, o conceito de vulnerabilidade ficou compreendido como sendo uma condição inerente ao ser humano – que naturalmente necessita de ajuda, e diz respeito ao estado de ser/estar em perigo ou exposto a potenciais danos em razão de uma fragilidade atrelada à existência individual (DO CARMO; GUIZARDI, 2018).


Com isso, conforme foi abordado, durante todo o período de gestação, parto e após parto, devido as condições físicas e psicológicas inerentes da própria gravidez, bem como de sua condição a técnica, a vítima gestante encontra-se em uma situação de evidente vulnerabilidade, a qual merece uma tutela específica.


A vulnerabilidade da mãe se dá em vários âmbitos, dentre eles a técnica frente aos profissionais da saúde, isso porque o desconhecimento a respeito dos procedimentos necessários ou formas de realização dos mesmos as fazem de vítimas em potencial, vez que confiarão nas atitudes destes profissionais e dificilmente identificarão estarem sendo vítimas desse tipo de violência. De modo que, em muitos casos, as mulheres passam pela situação sem sequer tomarem conhecimento que foram vítimas de uma agressão específica, denominada violência obstétrica.


Embora vulnerabilidade técnica seja um conceito emprestado do Direito do Consumidor, onde é amplamente aplicado, nota-se que perfeitamente se assenta à presente temática como forma de legitimar uma das áreas em que a mãe está vulnerável, e que persiste durante todo o período gestacional, pré e pós-parto.


A vulnerabilidade da gestante nos casos de violência obstétrica é primordialmente decorrente da própria gestação, uma vez que para gerar uma nova vida no ventre há uma alteração hormonal descomunal, bem como uma fragilidade emocional intrínseca da gravidez, fatores esses que devem ser considerados nos casos em que figuram como vítimas.


No que tange às penalidades aplicadas, comumente são atribuídas sanções administrativas apenas. Em se tratando de violências de cunho psicológico, caso não constituam crime, muitas vezes serão indenizadas por danos morais sofridos pela gestante.


No âmbito penal, o agente responde pelo crime cometido, entretanto, sem qualquer reconhecimento especial acerca da vulnerabilidade da vítima, a qual deveria ser tutelada de forma específica no ordenamento, uma vez que crimes praticados contra vulneráveis normalmente possuem agravantes e, no caso da violência obstétrica, a gestante é sem dúvida uma vítima em estado de hiper vulnerabilidade.


Assim, considerando que a violência obstétrica é um assunto de grande complexidade, é imprescindível que seja dada a ela sua devida importância, inclusive com uma detida análise no que diz respeito ao reconhecimento da vulnerabilidade da gestante nesses casos.


A vulnerabilidade da mulher grávida possui reconhecimento em algumas áreas do ordenamento pátrio, devendo de maneira equânime ser reconhecida e estendida a outras quando essas mulheres figuram como vítimas dessas agressões, para que a sanção aplicada seja correspondente a lesão sofrida, com devida observância dessa circunstância no momento e das condições físicas e psicológicas dessa vítima.


2.3 VIOLÊNCIA obstétrica E A RESPONSABILIDADE CRIMINAL


O Estado deve promover e garantir meios para uma vida digna a cada cidadão, em todos os aspectos, mencionando-se, em especial, a promoção dos direitos fundamentais para a existência digna, para se viver plenamente. Portanto, a situação vulnerável e delicada da gestante depende de uma proteção maior e mais específica do Estado, visando preservar sua dignidade.


Seja durante o acompanhamento pré-natal, seja durante o parto, a gestante faz jus ao direito de não ser submetida à tratamento cruel ou degradante, considerado um dos direitos humanos garantidos a todos os cidadãos, mas com ênfase na sua aplicação à gestante, mais uma vez, devido à sua situação especial (OLIVEIRA; ALBUQUERQUE, 2018).


Atualmente, não há no Brasil, legislação específica que regule ou mesmo tipifique a violência obstétrica (BRUN; MALACARNE; GIONGO, 2021). Como consequência, também inexiste “um conceito legal em âmbito nacional de violência obstétrica” (ZOUEIN, 2019, n.p.).


No ordenamento jurídico, tem-se que a proteção à mulher grávida é consagrada na própria Constituição Federal com direito fundamental (Art. 6), principalmente no âmbito trabalhista e da previdência social, de modo que se conclui que a genitora merece um tratamento especial da legislação por possuir uma vulnerabilidade, a qual é reconhecida ainda que não expressamente, nos casos mencionados alhures. No entanto, quando se trata de violência obstétrica, a Lei no 17.097 de 17 de janeiro de 2017, contudo, é delimitado e não tutela acerca da vulnerabilidade gestacional e as consequências jurídicas decorrentes da prática da violência obstétrica.


Não obstante, com a crescente prática de violência obstétrica no Brasil pelos profissionais de saúde, bem como em virtude da violação dos direitos das gestantes e parturientes, verifica-se a criação de duas leis federais com o fim de promover tal proteção, a saber a Lei no 11.108/2005 e a Lei no 11.634/2007 (ADAMI; GUIMARÃES, 2021).


A Lei no 11.108/2005 busca garantir “às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS”. A referida lei admite a presença, junto à parturiente, de um acompanhante, previamente indicado (BRASIL, 2005).


Por sua vez, a Lei no 11.634/2007 trouxe disposições “sobre o direito da gestante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde”. Conforme artigo 1, a gestante tem direito de saber a maternidade que realizará seu parto, bem como a maternidade em que será atendida nos casos de intercorrência pré-natal, além de ser previamente vinculada às respectivas maternidades. Tal vinculação é de responsabilidade do Sistema Único de Saúde e dar-se-á no ato da inscrição da gestante no programa de assistência pré-natal (BRASIL, 2007).


É possível verificar que as leis acima mencionadas, em que pese busquem trazer proteção às mulheres gestantes e parturientes, com a finalidade de que não ocorram violações nesse sentido, não colaboram, muito menos encerram a discussão acerca da violência obstétrica e sua ocorrência. De fato, não contribuem de forma realmente efetiva no resguardo dos direitos inerentes às mulheres em tais condições, principalmente no que se refere as práticas características da violência obstétrica (ADAMI; GUIMARÃES, 2021).


Quando se trata de responsabilidade criminal, é importante destacar que a violência obstétrica pode configurar crimes como lesão corporal, constrangimento ilegal, ameaça e até mesmo homicídio em casos extremos. No entanto, a responsabilização legal dos profissionais de saúde envolvidos em casos de violência obstétrica ainda é um desafio no Brasil. Muitas vezes, a falta de denúncias, medo de retaliação e a complexidade do sistema de saúde tornam difícil responsabilizar os culpados (SOUZA, 2017).


Como forma de explicar essas condutas aplicadas, vejamos às situações acima previstas penalmente:


Injúria: são as ofensas que a mulher grávida recebe, que tem como efeito o desrespeito a sua dignidade. Nesse caso a pena é de 1 (um) a 6 (seis) meses de detenção e multa.
Maus-tratos: caracteriza-se pela ausência de atendimento básico do médico e de sua equipe. A pena é de até 1 (um) ano de detenção.
Ameaça: pode ser vista nos casos onde o profissional de saúde profere frases de cunho ameaçador, onde deixa claro que se a mulher grávida não “obedecer” sofrerá consequências terríveis que pode prejudicar a sua saúde e a do bebê. Nesse caso, a pena prevista é de 1 (um) a 8 (seis) meses de detenção.
Constrangimento ilegal: configura-se com a exposição das partes íntimas das mulheres grávidas, além da prática de procedimentos desnecessários ou não autorizados pela mesma; a pena prevista é de 3 (três) meses a 1 (um) ano de detenção, ou multa.
Lesão corporal: aqui tem-se os casos onde há um dano corporal, como por exemplo a episiotomia; a pena pode chegar a 8 (oito) anos de reclusão, conforme a gravidade da situação.
Homicídio: caso mais grave de violência obstétrica, ele pode ocorrer em razão das graves lesões sofridas pela parturiente; a pena é de reclusão de 6 (seis) a 20 (vinte anos) (OLIVEIRA, 2020, p. 13).

Conforme artigo 139 do Código Penal, o crime de difamação se constitui no ato de “difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação”, ao passo que o artigo 140 traz como ato característico do crime de injúria “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro” (BRASIL, 1940). Em relação a ambos, as agressões verbais são direcionadas as gestantes e puérperas se enquadram nesses tipos penais – para o autor, haveria difamação diante de discriminação da mulher ou de seu recém-nascido, disfarçado de “brincadeira”, enquanto a injúria se faz presente quando ocorre violência verbal que atinge a dignidade da mulher.


A respeito do crime de maus-tratos, previsto no artigo 136 do Código Penal, se trata da conduta de expor a um perigo a vida ou a saúde de qualquer pessoa que esteja


sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina (BRASIL, 1940).

Nesse caso, a violência obstétrica pode ser visualizada em condutas como a realização de exames de toque excessivamente dolorosos, da negativa de medicação para dor, entre outras, ou seja, privando a vítima de cuidados considerados indispensáveis por quem está responsável pelo tratamento adequado.


No tangente ao crime de ameaça, previsto no artigo 147 do Código Penal, configurado na conduta de “ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”, esta conduta pode se expressar por meio de frases do tipo “se gritar de novo eu não vou mais te atender” ou “eu vou te dar motivo para gritar daqui a pouco”.


Quanto ao crime de constrangimento ilegal, do artigo 146 do Código Penal, caracterizado pelo ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda” (BRASIL, 1940), pode ser verificado quando há perda de autonomia da parturiente que, em muitas situações se vê obrigada a ser submetida a práticas das quais não concorda, “como nos casos de episiotomia, escolha do tipo de parto e da posição mais adequada para dar à luz, uso de fórceps, dentre outras” (VELOSO; SERRA, 2016, p. 265).


Referente ao crime de lesão corporal, do artigo 129 do Código Penal, caracterizado como “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”, é possível visualizar certa previsão sobre a prática de violência obstétrica. Isso porque o inciso IV de seu § 1 prevê que se de tal ofensa, resultar em aceleração do parto, a lesão será considerada de natureza grave, enquanto o inciso V do § 2 prevê que se resultar em aborto, a natureza é gravíssima (BRASIL, 1940).


Especificamente em relação ao aborto, importante registrar, ainda, que se ocorrer por conta de qualquer ato do profissional de saúde que não se justifique em salvar a vida da gestante, não se aplica a causa de exclusão da punibilidade do artigo 128, inciso I, do Código Penal, caracterizando o crime de aborto (BRASIL, 1940).


Acerca do crime de homicídio, caracterizado pelo ato de matar alguém, segundo Lima (2019) explica que se houverem abusos, decorrente de negligência, imprudência ou imperícia por parte dos profissionais de saúde, que resultarem na morte da gestante, o delito será o de homicídio culposo (artigo 121, § 4, do Código Penal), isto é, quando inexiste o dolo de matar. Porém, explica que caso tais profissionais tenham, de alguma forma, agido com dolo ou assumam o risco de provocar o dano, o crime poderá ser configurado como sendo homicídio doloso (artigo 121, caput, do Código Penal).


Por fim, cumpre destacar, ainda, que o artigo 61, inciso II, alínea “h” traz como circunstância que sempre irá agravar a pena, o crime praticado contra mulher grávida (BRASIL, 1940).


Ademais, o Direito Penal reconhece a vulnerabilidade da gestante quanto trata do estado puerperal no crime de infanticídio, previsto no artigo 123 do Código Penal, em que há uma redução de pena por considerar que a ela, por questões físicas e psíquicas, seria capaz de cometer um crime por ter sua capacidade de entendimento e auto inibição reduzidas decorrente destas alterações, por lógica, em se tratando da condição fisiológica de vulnerabilidade, deve haver alteração também nos casos em que a gestante é vítima.


Às penalidades aplicadas, comumente são atribuídas sanções administrativas aos profissionais que cometem a violência. Em se tratando de cunho psicológico, caso não constituam crime, muitas vezes serão indenizadas por danos morais sofridos pela gestante. No âmbito penal, o agente responde pelo crime cometido: ameaça, constrangimento ilegal, lesões corporais, estupro, dentre inúmeros outros que podem ocorrer, entretanto, sem qualquer reconhecimento especial acerca da vulnerabilidade da vítima, a qual deveria ser tutelada de forma específica no ordenamento, uma vez que crimes praticados contra vulneráveis normalmente possuem agravantes e, no caso da violência obstétrica, a gestante é sem dúvida uma vítima em estado de hiper vulnerabilidade.


Ainda que se possa pensar que o ordenamento jurídico brasileiro apresenta condições de suprir a lacuna, certamente que a ausência de normas específicas que regulamentem a violência obstétrica constitui afronta a toda principiologia da Constituição Federal de 1988, bem como verdadeira omissão por parte do Poder Legislativo, que ignora o crescimento da problemática no país.


Uma das consequências devido a inexistência de legislação federal brasileira que regule a matéria, geralmente as ocorrências das condutas praticadas por médicos acabam por ser demandadas simplesmente como erro médico (OLIVEIRA, E., 2019).


De fato, em razão da falta de regulamentação à prática de violência obstétrica, “tem-se aplicado a tais casos os critérios gerais de responsabilidade civil de profissionais de saúde, hospitais, planos de saúde e Poder Público, o que faz com que a prática de violência obstétrica seja enquadrada como erro médico” (LEITE, 2017, p. 5).


Não obstante o erro médico e a violência obstétrica possam ocorrer de forma simultânea, certamente que tais práticas não são sinônimos e não dependem uma da outra, merecendo, por isso, tratamentos complemente distintos (LEITE, 2017).


Frisa-se que em muitas ocasiões, a violência obstétrica não prescinde de culpa, simplesmente porque não estar baseada da imprudência, imperícia ou negligência. Em verdade, são condutas que sequer deveriam ser cogitadas na prática, pois não fazem parte do exercício regular do direito de exercer a profissão médica na assistência ao parto (OLIVEIRA, E., 2019).


Veja-se, pois, que apesar da tentativa da esfera médica em afastar a ideia de violência obstétrica nos ambientes hospitalares, suas condutas caracterizadoras e aquelas relativas a erro médico não se confundem, de modo que não podem ser tratados como sinônimos, muito menos preverem a mesma punição.


Há uma problemática na aplicação por analogia do Código Penal. Não porque a prática de tais atos contra as mulheres gestantes ou parturientes não possam ser punidos com base no código penalista brasileiro, mas sim, porque não haverá a punição como sendo violência obstétrica propriamente dita. E isso ocorre justamente por não haver lei específica, definindo seu conceito, bem como as ações e punibilidades a ela inerentes (BRUN; MALACARNE; GIONGO, 2021).


Mesmo que seja necessária uma lei que regule mais especificamente essa violência, na doutrina jurídica brasileira esse entendimento ainda não é uniforme. Caso se crie uma norma que penalize tal conduta, pode-se correr o risco de haver uma hipercriminalização do Direito Penal, uma vez que essa matéria já pode ser enquadrada em diversos tipos penais (BRANDÃO, 2019).


Essa realidade é vista por Queiroz (1998 apud BRANDÃO, 2019, p. 01) como: “mais leis, mais penas, mais policiais, mais juízes, mais prisões significa mais presos, mas não necessariamente menos delitos”.


Apesar desse entendimento, para fins dessa pesquisa, compreende-se necessária uma legislação própria para a violência obstétrica, em razão de entender que a gravidade desse ato não atinge somente a mulher grávida e ao bebê, mas a toda a família e a sociedade.


A ausência de atuação por parte do Poder Legislativo influencia a visão equivocada do Poder Judiciário ao julgar e criar jurisprudências equivocadas acerca da violência obstétrica. Conforme exposto anteriormente, um dos motivos se dá pela responsabilização errônea dos profissionais de saúde ao condená-los pela conduta culposa, ao invés de dolosa. Outro ponto, é a evidente seletividade no sistema penal quando se trata de autores que ocupam a função de médicos (as). Responsabilizar criminalmente o médico infrator não significa perseguir bons profissionais, nem tampouco reprimir erros humanos compreensíveis e escusáveis. Significa, sim, um direito da sociedade e um dever do Estado.


Para avançar na luta contra a violência obstétrica e garantir a responsabilização criminal quando necessário, é importante promover a conscientização e a educação sobre os direitos das mulheres durante a gravidez e o parto. Isso inclui informar as gestantes sobre seus direitos, incentivando-as a denunciar casos de violência obstétrica e fornecendo apoio jurídico e psicológico às vítimas. É fundamental que as instituições de saúde e os profissionais envolvidos se comprometam com práticas humanizadas e respeitosas, incorporando diretrizes internacionais de cuidados obstétricos (ZAVALA, et al, 2016).


O papel do sistema de justiça é essencial. As autoridades devem investigar rigorosamente as denúncias de violência obstétrica, e os profissionais de saúde que violarem os direitos das gestantes devem ser responsabilizados de acordo com a lei. Isso não apenas garantirá justiça para as vítimas, mas também enviará um sinal claro de que a violência obstétrica não será tolerada no Brasil (ANGELIM, et al, 2015).


CONSIDERAÇÕES FINAIS


A violência obstétrica no Brasil representa um sério problema que afeta não apenas a saúde física e emocional das mulheres, mas também seus direitos fundamentais e dignidade. Apesar dos avanços legais destinados a proteger as gestantes durante o parto, a efetiva aplicação dessas leis e a responsabilização dos responsáveis ainda enfrentam desafios consideráveis.


Em que pese se possa admitir a aplicação do Código Penal diante da inexistência de lei, é premente a necessidade de o legislador ordinário, atentando-se ao fato de que a violência obstétrica é problema atual e crescente no país, fazer uso de seu poder de legislar para criar lei específica que tipifique a violência obstétrica como fato antijurídico para, além de conferir maior visibilidade à prevenção e proteção das mulheres gestantes e parturientes, punir de forma efetiva aqueles profissionais que praticarem condutas violadoras, buscando, com isso, erradicar este mal e conferir segurança à mulher durante este momento importante de sua vida.


É essencial que se continue a luta por mudanças profundas no sistema de saúde, promovendo a conscientização sobre os direitos das mulheres e capacitando os profissionais para fornecer cuidados humanizados e respeitosos. A atuação rigorosa das autoridades na investigação e responsabilização dos casos de violência obstétrica é crucial para enviar uma mensagem clara de que esse tipo de abuso não será tolerado.


A erradicação da violência obstétrica e a garantia de uma maternidade segura, digna e respeitosa para todas as mulheres no Brasil requer uma abordagem ampla que inclua educação, conscientização, responsabilização legal e mudança cultural. Esta é uma questão que transcende a esfera da saúde; trata-se de um imperativo de justiça e respeito pelos direitos humanos das mulheres.


É fundamental que a luta contra a violência obstétrica não seja vista como uma responsabilidade exclusiva das mulheres, mas sim como um compromisso coletivo que envolve toda a sociedade e as instituições. A conscientização sobre este problema deve ser disseminada de forma abrangente, englobando homens, mulheres, profissionais de saúde, educadores e legisladores, todos desempenhando papéis na promoção de um ambiente onde o respeito pelos direitos das gestantes seja a norma.


A transformação cultural e a melhoria dos sistemas de saúde são processos que demandam tempo e esforço contínuo. Não se pode subestimar a importância desta causa. Garantir que as mulheres se sintam respeitadas e protegidas durante o parto não é apenas uma questão de justiça, mas também contribui para a saúde pública, fortalece os laços familiares e promove o bem-estar geral da sociedade.


É crucial manter a pressão por reformas, conscientização e responsabilização em relação à violência obstétrica. Somente através da colaboração de todos os setores da sociedade, podemos aspirar a um sistema de saúde mais humano e compassivo, onde o nascimento de uma criança seja um momento de alegria e dignidade para todas as mulheres no Brasil.


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Esse artigo pode ser utilizado parcialmente em livros ou trabalhos acadêmicos, desde que citado a fonte e autor(es).



Como citar esse artigo:


PEREIRA, Francinni Ferreira; PAIVA, Jaqueline de Kassia Ribeiro de. Violência obstétrica e a responsabilidade criminal no Brasil. Revista QUALYACADEMICS. Editora UNISV; v.2, n.1, 2023; p. 21-43. ISBN 978-65-981660-0-7 | D.O.I.: doi.org/10.59283/ebk-978-65-981660-0-7


Baixe o artigo completo em PDF VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A RESPONSABILIDADE CRIMINAL NO BRASIL:



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Carô Ferreira
Carô Ferreira
Oct 19, 2023

Parabéns , este é um tema de grande relevância e urgência.

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