VANDALISM BETWEEN STREETS AND NETWORKS:
SOCIAL REPRESENTATIONS OF THE 2013 PROTESTS IN BRAZIL
Informações Básicas
Revista Qualyacademics v.3, n.1
ISSN: 2965976-0
Tipo de Licença: Creative Commons, com atribuição e direitos não comerciais (BY, NC).
Recebido em: 21/01/2025
Aceito em: 21/01/2025
Revisado em: 26/01/2025
Processado em: 01/02/2025
Publicado em: 13/02/2025
Categoria: Estudo de Caso
Como citar esse material:
ÁVILA, Raphael Ferreira de. Vandalismo entre ruas e redes: Representações sociais das manifestações de 2013 no Brasil. Revista QUALYACADEMICS. Editora UNISV; v.3, n.1, 2025; p. 84-105. ISSN 2965976-0 | D.O.I.:
Autor:
Raphael Ferreira de Ávila
Psicólogo e Mestre em Psicologia pela UFRRJ. Doutor em Psicologia pela UFF. Contato: raphaelfdeavila@gmail.com
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RESUMO
O presente artigo investiga as representações sociais do fenômeno do vandalismo no contexto das manifestações de junho de 2013 no Brasil, a partir da Teoria das Representações Sociais (TRS). O objetivo geral é compreender como a noção de vandalismo foi construída e difundida pelos meios de comunicação e nas redes sociais, influenciando a percepção pública e a categorização dos manifestantes em pacíficos e vândalos. A metodologia adotada baseia-se na coleta de dados por meio de um questionário aplicado nas redes sociais, no qual os participantes realizaram uma tarefa de evocação livre do termo "vandalismo", cujos dados foram analisados estatisticamente pelo software EVOC 2003® e qualitativamente pela análise de conteúdo de Bardin (1992). A justificativa para esta pesquisa reside na necessidade de compreender a influência da mídia e do discurso governamental na construção das narrativas sobre os protestos e na criminalização de determinados segmentos, especialmente considerando o crescimento do uso das redes sociais como espaço de formulação e disseminação de conhecimento coletivo. Os principais resultados indicam que a categoria central das representações sociais sobre vandalismo está associada à "violência", sendo a grande mídia vista como um agente manipulador na forma como enquadrou os eventos, destacando-se também a presença de termos como "destruição", "quebra-quebra", "caos" e "manipulação da mídia" no núcleo central das evocações. Além disso, os dados apontam que há uma polarização na forma como o vandalismo é percebido: enquanto parte dos respondentes o considera um instrumento legítimo de protesto, outro segmento o enxerga como ação oportunista e criminosa que compromete a legitimidade dos movimentos sociais. A pesquisa evidencia, assim, a complexidade das representações sociais associadas às manifestações e ao vandalismo, reforçando a importância de analisar criticamente o papel da mídia e das redes sociais na construção da opinião pública sobre eventos políticos e sociais de grande impacto.
Palavras-chave: Representações Sociais; Manifestações Públicas; Vandalismo.
ABSTRACT
The present article investigates the social representations of the phenomenon of vandalism in the context of the June 2013 protests in Brazil, based on the Theory of Social Representations (TSR). The general objective is to understand how the notion of vandalism was constructed and disseminated by the media and social networks, influencing public perception and the categorization of protesters as peaceful or vandals. The methodology adopted is based on data collection through a questionnaire applied on social networks, in which participants performed a free word association task with the term "vandalism." The collected data were analyzed statistically using the EVOC 2003® software and qualitatively through Bardin’s (1992) content analysis. The justification for this research lies in the need to understand the influence of the media and governmental discourse in shaping narratives about the protests and in the criminalization of certain segments, particularly considering the growing use of social networks as a space for knowledge formulation and dissemination. The main results indicate that the central category of social representations of vandalism is associated with "violence," with mainstream media being perceived as a manipulative agent in how it framed the events. Additionally, terms such as "destruction," "rioting," "chaos," and "media manipulation" stand out in the central core of evocations. Furthermore, the data suggest a polarization in how vandalism is perceived: while some respondents see it as a legitimate form of protest, others view it as an opportunistic and criminal act that undermines the legitimacy of social movements. This research thus highlights the complexity of social representations related to protests and vandalism, reinforcing the importance of critically analyzing the role of the media and social networks in shaping public opinion on significant political and social events.
Keywords: Social Representations; Public Demonstrations; Vandalism.
1. INTRODUÇÃO
Em junho de 2013 grandes cidades no Brasil experimentaram alguns dos maiores protestos de sua história: milhões de pessoas ocuparam as ruas e as redes, exprimindo uma surpreendente e talvez imprevista indignação. Como evidências de uma infinidade de discussões políticas mal resolvidas, as chamadas jornadas de junho e as discussões que acarretaram impactaram o panorama político nacional, visto que da ação direta nas ruas se conduzi uma vitória importante, a revogação de 20 centavos de aumento nas tarifas de passagem de ônibus, reinserindo esta tática na pauta de movimentos sociais.
Manifestações por todo país surgiram, com diferentes motivos e resultados. Em comum, além da atuação firme e truculenta das polícias, uma suposta separação dos manifestantes entre pacíficos e vândalos. Estes últimos seriam os responsáveis pela destruição do patrimônio público e privado durante os protestos, o chamado “vandalismo”. Esta divisão, amplamente propagada por imprensa e governantes, depois de várias manifestações resultarem em confronto com as forças de segurança pública e depredações, acabou por rotular os manifestantes envolvidos nos confrontos sob o estigma de vândalos, que seriam assim desprovidos de motivações políticas e que agiriam “infiltrados”, atacando a polícia e o patrimônio com o simples objetivo de estabelecer o caos. Seriam, assim, uma minoria de baderneiros e bandidos, que não representariam o espírito das manifestações segundo o discurso propagado.
Este artigo apresenta uma investigação acerca do fenômeno denominado “vandalismo” no contexto das manifestações sociais no Brasil em junho de 2013. A partir da Teoria das Representações Sociais (a partir daqui abreviada como TRS) e de teorias da psicologia e sociologia da violência, foram analisados os conteúdos de evocações livres coletadas em redes sociais, buscando-se compreender as representações compartilhadas acerca destes atos no contexto das manifestações que eclodiram por todo país no período. Os dados foram coletados em questionários distribuídos nas redes sociais, em janeiro de 2015.
A TRS merece aqui destaque, por permitir um olhar psicossocial com boa credibilidade sobre o discurso do senso comum na condição de objeto de análise que pode ser visto pelo que é dito pelos atores sociais em suas relações, e em relação a sua presença na informação midiática, em uma sociedade na qual a informação se torna cada vê mais acessível e produtora de opinião. A construção social dos discursos mais recorrentemente utilizados e a implicação desses nas ações do cotidiano são elementos que esta teoria ajuda a elucidar, permitindo analisar, através da psicologia social, fenômenos pertinentes e emergentes na sociedade.
Com o desenvolvimento tecnológico e a democratização da internet nas últimas décadas, as ferramentas de informação se disseminaram e o fluxo de informações cresceu vertiginosamente. Hoje vivemos com meios de comunicação de participação cada vez mais próxima e rotineira na vida social e determinante na produção e reprodução de sentido.
Assim, torna-se importante para debater um fenômeno que tem tomado formas a partir das redes sociais, reconhecer os espaços de formulação do conhecimento que o envolve, como é o caso das manifestações sociais no Brasil a partir das jornadas de junho mais recentemente, pensando as representações sobre as questões ligadas ao “vandalismo” nas manifestações com espaços das redes sociais como potencial campo de pesquisas, trazendo contribuições na medida em que a produção acadêmica sobre este assunto carece de estudos sobre a temática, em especial os que abordem as representações sociais.
2. AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO DE 2013 E O VANDALISMO
Nos protestos organizados inicial e principalmente contra o aumento das passagens de transporte público, pelo Movimento Passe-Livre (MPL) na cidade de São Paulo e depois alastrando-se por diversas cidades do país, foram constatadas uma enorme diversidade de ações de destruição e depredação de patrimônios públicos e privados (Cava, 2013; Harvey, 2013). Independentemente das justificativas que envolvam tais ações, a grande mídia corporativa, amparada em coro por discursos dos governantes, foi imediatamente tipificá-los como “vandalismo”. O movimento das passeatas se ampliou, e com isso, no seu interior, desenvolveram-se em torno dos focos das lutas uma pluralidade de tendências e percepções, que revelaram também o apelo individual. Assim, as ruas da cidade foram não só palco e território das lutas, mas também aquilo pelo que se luta. Na colisão destes e outros poderes, as insurgências podem ser afirmadas como atos de grande criatividade política.
As revoltas surgidas nas ruas de 2013 podem ser descritas como organizadas na forma da “multidão” (Hardt, 2014), o que significa dizer que, em vez de dirigidas por partidos, direção centralizada ou mesmo um comitê de liderança acima das massas, os movimentos foram auto organizados (ou até mesmo não organizados), conectados horizontalmente pelo território social. Mérito desta sequência de manifestações foi retomar a ação direta nas ruas como instrumento possível à luta dos movimentos sociais, além de fazer aflorar questões e a partir dos aumentos de passagens, eclodiram pautas não necessariamente ligadas a eles. Assim, as “jornadas de junho” muniram movimentos alargando pautas e acrescentando milhares de pessoas às ações e manifestações. Os eventos que ocorreram a partir daí, e ainda ocorrem pelo Brasil, crescem usando-se também das redes sociais como instrumento de aglutinação das pessoas, causas e performances (Hardt, 2014).
Nas multidões de junho, até hoje tem-se dificuldade em delimitar, em sua maior parte, os vetores sociais que tomaram espaço às ruas. Um movimento sem lideranças claras e perceptíveis, por que não são as lideranças habituais levadas pelos tradicionais atores políticos (sindicatos, partidos políticos e organizações sociais), e por isso, de uma pluralidade de tendências e percepções (Ávila & Monteiro, 2014). Manifestações como a do dia 20 de junho de 2013, que contabilizou uma multidão em repúdio a vínculos político-partidários, revelam como na continuidade da forma de governar acumulam-se desgastes.
Uma série de ações mundo a fora podem ser destacadas como atravessamento para além das pautas das manifestações no Brasil em junho de 2013 (Harvey, 2013). A globalização, processo complexo que afeta diversos países de maneiras variadas, parece ser cerne que unifica tantos protestos em suas multiplicidades: são ações contra as múltiplas facetas da globalização capitalista. Revoltas como as do sul da Europa, a de Istambul ou do Egito, apesar de tratarem de problemas domésticos, podem ter identificadas certas familiaridades: são disseminadas pelas redes virtuais e com o amparo de uma nova mídia, tem encarado um conjunto construído pela reação calculada das forças em posição de poder e informação (Vinicius, 2014). Esta onda de manifestações que explodiu pela Europa e Oriente Médio em 2011 (Primavera Árabe no Egito, Revolução Verde no Irã, e protestos na praça Taskim, centro de Istambul, Turquia) e o Brasil de junho de 2013 se aproximam. Países com até então histórias de sucesso econômico e crescimento desenvolvimentista, alta confiança depositada no seu próprio futuro, que, porém, não teriam superado sentimentos de desconforto e descontentamento de demandas particulares. Nenhuma delas pode ser reduzida a uma única questão, pois lidam com uma combinação específica de questões econômicas e político-ideológicas.
No Brasil, através das expressões minoritárias das diversas opiniões existentes na sociedade via representação parlamentar e a crescente ausência de sintonia ocasionada pelo descolamento da mídia tradicional com a população, essas diversidades não encontraram canais de expressão pública, e não teriam como se fazer representar no debate público formador de opinião.
Assim, as manifestações surgem como movimentos que fizeram das ruas da cidade lugares atravessados por desejos e revoltas, lugares de gestos e ações cotidianas ausentes dos limites e fronteiras que os caracterizam como território exclusivo ao tráfego (ou a retenção) de veículos, sendo expressão de um espaço comum. As jornadas de junho de 2013 parecem ter inserido um novo paradigma político às ações diretas nas ruas do Brasil: organização de atos pelas redes sociais, confronto com as forças policiais, a ação "black bloc", e o desvencilhar-se de lideranças. Estas diferenças evidenciam outro jeito de se manifestar publicamente no país, em defesa aos direitos à cidade (serviços, mobilidade urbana, ocupações), e ao direito de ocupar suas ruas, em que as ações de depredação de patrimônio têm feito parte (Harvey, 2013). Essas revoltas parecem baseadas “na afirmação do comum – uma afirmação, especialmente, de tornar comum a metrópole ela própria” (Hardt, 2014 p.8), e tratar destas movimentações que persistem na ocupação da cidade é entender junho de 2013 como um importante agenciamento.
3. SOBRE VIOLÊNCIA E VANDALISMO
Ao se pesquisar sobre as representações de um fenômeno como o “vandalismo” no contexto de manifestações sociais, se torna importante reconhecer que alguns fatores demarcam tal fenômeno. Aqui, destacaremos um de fundamental importância fator para tratar sobre tal fenômeno social: a violência.
A violência é um vasto campo de estudo de diversas abordagens das ciências humanas e sociais. Aqui, será discutida principalmente a partir das formulações que dialogam e permitem desenvolver as formulações tratadas pela temática. Apesar das diferentes formulações de cada autor, é possível destacar que estes concordam em tomar a violência como um fenômeno multideterminado, de definições provisórias e inferidas a partir de casos particulares, e que viria manifestando-se em influência nas relações sociais, constituindo um objeto de questões psicológicas principalmente àqueles que residem nos espaços urbanos (Costa, 1986; Weiviorka, 1997; Santos, 2002; Coimbra & Nascimento, 2003).
A violência decorreria de uma rede de fatores socioeconômicos, políticos e culturais que se articulam, interagem e se concretizam nas condições de vida de grupos sociais e de áreas específicas (Weiviorka, 1997; Coimbra & Nascimento, 2003). Etimologicamente, a raiz da palavra atribui-se a expressão latina “vis”, que significa força, energia, potência. Fala-se em violência dos criminosos, da ação policial, da ação política, das leis, do modelo econômico, da fome, da miséria, da educação, dos fenômenos da natureza, entre muitos outros contextos e situações. Elemento mais visível das faces atuais da violência hoje talvez seja visto nas referências crescentes de seus protagonistas vinculados a uma identidade étnica ou religiosa, no que vem sendo chamado de fundamentalismo. A violência nesse sentido é também tomada a partir de sua constituição como um recurso cultural eventualmente mobilizado para fins políticos, por vezes alimentando atitudes extremas, bem além dos problemas que a moveram inicialmente (Weiviorka, 1997).
A violência não se encontra nas ruas ou em qualquer outro lugar específico, já que como exercício, está em instituições e dentro dos lares; não tem uma única face, mas se transveste em formas variadas, produzidas no interior de contradições sociais, em tempos e lugares históricos definidos (Costa, 1986). Ao aproximar o conceito de violência com a ideia de privação, de privar alguém de seus direitos fundamentais, até mesmo do direito de se realizar como cidadão, vale lembrar da noção de violência como uma “qualidade do movimento que impede as coisas de seguirem seu movimento natural” (Costa, 1986, p. 15). Violência e vida social se desconectam, uma vez que o objeto da violência é formado por seres que corporificam relações sociais. Assim, na ação violenta, dois aspectos parecem fundamentais: o caráter de intensidade brutal de sua força, e, seu poder de causar alguma forma de dano a algo ou alguém.
As ações que se exerce sobre algo, não sempre se dirigem ao que têm de material e físico, mas sim a seu ser social; ou seja, à sua condição de sujeitos de determinadas relações sociais, econômica e políticas que se dão em relação à determinadas instituições. Estas instituições e relações não existem, portanto, à margem dos sujeitos concretos. O corpo talvez seja o objeto primeiro e direto da violência, mesmo que esta, a rigor, não se dirija em última instância ao homem como ser material, e sim como ser social e consciente. A violência visaria assim dobrar a consciência, obter seu reconhecimento, e a ação que se exerce sobre o corpo dirige-se, por isso, a ela (Costa, 1986).
Santos (2002) nos apresenta como determinantes para a violência, as modificações experimentadas nas sociedades contemporâneas marcadas pela expansão da economia de mercado, incorporação do conhecimento científico e tecnológico, produção industrial, acordos de integrações econômicas supranacionais e regionais, e florescimento de uma cultura de massa. Considerada como processo complexo que atua de maneira contraditória, produzindo conflitos e disfunções, a violência é tomada assim como incidindo tanto sobre os sistemas sociais em grande escala como também sobre contextos locais e dos grupos situados em diferentes regiões. Para este autor a desigualdade de oportunidades de vida é a posição social das populações mais diretamente atingidas pela globalização, na forma de um acesso desigual a recursos e uma vivência de situações sociais desiguais, as quais podem ser resumidas em oito dimensões: saúde; habitação; trabalho; educação; relações de sociabilidade; segurança; informação e conhecimento; e participação política (Santos, 2002).
Para Santos (2002), assim, a violência não teria um caráter absoluto, posto que não prescinde de uma base legitimadora para seu exercício. Por outro lado, as ideologias subjacentes às relações de exploração-dominação também não seriam suficientes para assegurar a subordinação, uma vez que tais relações não se produzem ao largo das relações de poder (Santos, 2002). Em outras palavras, a violência apresenta-se como uma das instâncias reguladoras das relações sociais. Tomada como cada vez menos adequada às sociedades contemporâneas, a violência tem sido estudada em sua estreita articulação com os debates sobre democracia e a constituição do Estado de Direito. Foi Max Weber quem formulou a clássica compreensão da violência praticada pelo Estado, reconhecida a partir da formulação de que este só poderia ser definido sociologicamente pelo meio específico que lhe é próprio: a violência física. A relação particularmente íntima entre Estado e violência, revela como, nos limites de um território determinado, este reivindica com sucesso para seu próprio benefício o monopólio da violência física legítima (Weiviorka, 1997). O que é com efeito próprio de nossa época é que ela só concede a todos os outros grupos, ou aos indivíduos, o direito de apelar para a violência à medida que o Estado o tolera: este passa a ser, então a única fonte do ‘direito’ à violência.
O processo de redemocratização no Brasil tem sido refratário de mudanças no aparato repressivo e na violência institucionalizada, que se volta, agora, para as camadas mais excluídas social, econômica e culturalmente. Para Coimbra & Nascimento (2003), a violência no caso brasileiro, menos de três décadas após o início do processo de redemocratização do país, apresenta-se como resquício da ditadura civil-militar instaurada em 1964, preservando características autoritárias e excludentes daquele regime político.
Assim, Coimbra & Nascimento (2003) entendem que é o Estado que busca deter a manutenção deste monopólio sobre a violência como estratégia de controle das populações, embora trata-se de um país que se apresente com contornos histórico-espaciais propícios à proliferação de determinadas formas de violência e criminalidade, como dimensões continentais, fronteiras e espaço aéreo desprotegidos, periferias que em alguns casos (o mais notório é o do Rio de Janeiro) se constituíram em estreito vínculo e relações de proximidade com as camadas urbanas médias e abastadas, favelas com peculiaridades arquitetônicas e geográficas que favorecem sua ocupação e domínio pelo tráfico de drogas, índices precários de distribuições de renda (rotina e naturalização de práticas de execução extrajudicial de segmentos específicos da população, sobretudo pelas polícias militares), um passado escravocrata recente e por fim um legado peculiar do Estado autocrático - a imposição dos atos mais arbitrários e do seu esquecimento pela via legal (os atos institucionais, os processos contra os “terroristas”, a Lei da Anistia), o que nos deixa como patrimônio coletivo uma cultura da impunidade (Coimbra & Nascimento, 2003). Santos avalia que vivemos:
... um horizonte de representações sociais da violência para cuja disseminação em muito contribuem os meios de comunicação de massa, produzindo a dramatização da violência e difundindo sua espetacularização, enquanto um efeito da violência exercida pelo “campo jornalístico” (Santos, 2002, p. 22).
Wieviorka (1997) formula a ideia de que a violência frequentemente, ou pelo menos parcialmente, é a marca de sujeitos contrariados, proibidos ou infelizes. Esta seria a marca de alguém que foi, ele mesmo, vítima de uma violência. O autor afirma que a violência urbana, ligada à frustração pelo não acesso aos bens materiais ou a um reconhecimento simbólico, à discriminação e ao racismo, ou ainda ao sentimento de abandono ou ressentimento em relação às instituições e ao Estado, é mais bem compreendida quando tomada a partir da noção de sujeito. A violência urbana é percebida em função de uma recusa de subjetividade, de um não reconhecimento que contribui para a construção de uma subjetividade também despontencializada ou infeliz.
A violência no Brasil, segundo Coimbra & Nascimento (2003) só pode ser entendida como processo, como produto de relações históricas. Tal formulação tem ecos na discussão de Santos (2002), que considera também que as condições particulares vividas pelo país não só tornam possível a emergência de determinadas formas de violência e criminalidade, mas também condicionam a nomeação e a visibilidade de algumas de suas modalidades - excluindo outras menos visíveis - o que produz um inventário hierarquizado de expressões desses fenômenos, bem como do grau de reprovação social que lhes é dirigida. (Santos, 2002).
No Brasil contemporâneo, a violência difusa foi associada a crimes contra a pessoa e crimes contra o patrimônio, sendo que este último, atingindo predominantemente (mas não exclusivamente) as camadas médias e mais abastadas, é o que ganha maior visibilidade nos meios de comunicação (Coimbra & Nascimento, 2003). É a partir desta difusão que é possível compreender o surgimento do vandalismo nas manifestações como fenômeno. Assim, podemos construir um recuo histórico e nos aprofundar sobre esta noção.
O termo “vandalismo” tem sua origem na História Antiga, fazendo referência ao povo Vândalo, de procedência germânica e um dos invasores do Império Romano já na época enfraquecido. Grupos como esse eram considerados, do ponto de vista da Roma dos Césares, como “bárbaros”, posto que não possuiriam a “cultura desenvolvida” do império. Os Vândalos por diversas vezes espalharam-se pela Europa, até encontrar um refúgio em Cartago, no norte da África, para então entrar em Roma e lá realizar saques. A versão romana, preservada ao longo do tempo, manteve a expressão ‘vândalo’ como um sinônimo de saqueador, destruidor e baderneiro.
A primeira menção histórica do vandalismo como atitude ou modo de expressão que teria como objetivo destruir uma determinada cultura e sua arte, bem como o patrimônio alheio, é associada a Revolução Francesa. O Bispo de Blois, Henri Grégoire, em documentos datado de 10 de janeiro de 1794, refere-se às atitudes dos integrantes do exército republicano como “vândalas” (Schilling, 2013). Nas Brasil, o termo vinha relacionando-se à depredação de espaços e patrimônios, em especial os públicos, usada para qualificar ações como as pichações, entretanto, após os eventos de junho de 2013, essa expressão foi totalmente reintegrada ao nosso vocabulário, através de seus usos intensivamente nos noticiários, como descritora das ações nas ruas durante manifestações sociais.
O termo agora vem sendo aplicado de uma forma diferente, entre as significações mais decisivas de hoje, algumas se assemelhando às que caracterizaram no início da era industrial, das classes contestadoras nascentes, percebidas como classes perigosas. Na França, movimentos sociais jovens e suas condutas eram politicamente desqualificadas, pelos usos da violência como modo de agir. Os “Apaches” (jovens cujas ações eram descritas como brigas e condutas delinquentes foram tomadas como movidos apenas de raiva ou ódio) ocuparam de forma semelhante aos vândalos brasileiros de 2103, as colunas dos jornais da época (Weiviorka, 1997).
Nas manifestações de 2013, das violências evidenciadas através da cobertura midiática tanto da ação manifestante quanto das forças de segurança pública, despreparadas para lidar com frequência e proporção tão grande de eventos, é improvável e deveras pretensioso apontar gêneses. A truculência policial, os confrontos e o rastro de depredações deram a tônica do desfecho da maior parte destas manifestações, e em eventos com a grandeza como do dia 20 de junho, com mais de um milhão de pessoas somente na Av. Presidente Vargas, Rio de Janeiro (Dados oficiais da PMERJ relatam que em 20 de junho havia cerca de 300 mil pessoas na manifestação da Presidente Vargas. A COPPE-UFRJ, em recontagem conclui, entretanto, que havia um milhão e duzentas mil pessoas (1.200.000) participantes do ato). Instituições como bancos, agências telefônicas e multinacionais tiveram suas fachadas completamente destruídas.
A grande imprensa diariamente noticiou o que tratava como minoria barulhenta, inexpressiva, provavelmente manipulada por ideologias e grupos extremistas, e a palavra “vandalismo” foi a chave da cobertura desde as primeiras manifestações. Mesmo assim, os manifestantes afluíam às marchas em número maior e com atitude mais aguerrida (Cava, 2013). As formas de violência atuaram por fim produzindo determinados sujeitos e seu exercício realizado como cultura, penetrando dos espaços mais íntimos aos mais coletivos da vida social, se apresentando como uma das formas de sociabilidade dominantes no mundo contemporâneo (Weiviorka, 1997). A própria violência enfim mudou. E assim, podemos considerar não mais o fenômeno no que ele apresenta de concreto, de objetivo, mas as percepções sobre ele que circulam, e que aqui serão tratadas principalmente a partir das representações que a ela se associam e a buscaram lhe dar sentido.
4. A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
O conceito de representação social designa uma forma específica de conhecimento, o saber do senso comum, cujos conteúdos manifestam a operação de processos generativos e funcionais socialmente marcados. Mais amplamente, designa uma forma de pensamento social. Uma definição muito bem aceita dentro do campo e que resume suas principais características é dada por Jodelet, na qual as representações sociais seriam “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (Jodelet,1989, p.22).
As representações sociais, para Abric (1998), teriam assim um papel fundamental na dinâmica das relações sociais e práticas, porque respondem a quatro funções essenciais: de saber, que permitem compreender e explicar a realidade; identitárias, que definem a identidade e permitem a salvaguarda da especificidade dos grupos; de orientação, que guiam os comportamentos e as práticas; e justificatórias, que permitem justificar a posteriori as tomadas de posição e os comportamentos.
Um fenômeno, circunscrito antes a um universo acadêmico e político, ganha os noticiários e as conversas entre os grupos sociais, e pode assim se transformar em um objeto de estudo de representações sociais. Sua polissemia e o grau de importância geram o desconforto necessário a uma apropriação socialmente partilhada pelos grupos, origem da formação das representações sociais conforme nos aponta Moscovici (2007). A formação de representações sociais, portanto, agrega duas principais características: em primeiro lugar a premissa de que as teriam o objetivo de transformar o não-familiar em familiar, e em segundo lugar, uma modalidade, segundo Moscovici (2007), que tem por função direcionar o comportamento e a comunicação. Nesse sentido, podemos através da identificação das representações sociais, antever prováveis comportamentos gerados a partir delas.
Segundo Abric (1998) essas representações se estruturariam em torno do que chamou de um “núcleo central” e um “sistema periférico”. O núcleo central possuiria em sua concepção a função geradora e organizadora da representação social, conferindo "estabilidade a esta”. Já o sistema periférico agregaria características mais instáveis e permeáveis. Com isso age como um dispositivo de defesa da representação frente a novos elementos desestabilizadores. Nessa concepção, Abric (1998) resume as características do sistema central e periférico das representações como o primeiro sendo coerente, estável, consensual e historicamente definido e o segundo funcional, flexível, adaptativo e relativamente heterogêneo. Portanto, conhecer uma representação é conhecer como se organizam seus sistemas central e periférico (Sá, 1996).
Na perspectiva que aqui assumimos, o sujeito é entendido essencialmente como ator social, isto é, produto e produtor de uma realidade. Trabalhar com as representações sociais, nesse sentido, nos permitiriam uma aproximação das dimensões psicossociais envolvidas na vivência dos fenômenos socialmente produzidos e partilhados.
5. O MÉTODO
Esta pesquisa teve como objetivo geral levantar os aspectos psicossociais do vandalismo a partir das representações sociais de usuários da rede social Facebook, no contexto das manifestações a partir de junho de 2013, investigando as representações do vandalismo no contexto das manifestações públicas do Brasil contemporâneo. A partir destes dados, nos permitiu avançar nas discussões das implicações destas representações na construção do pensamento social sobre o fenômeno, e sua relação com a cidade, a contemporaneidade e a violência.
O formulário de coleta de dados para esta pesquisa foi construído a partir da ferramenta Google Forms®. Durante o tempo de coleta dos dados, foi realizada uma única publicação oficial de divulgação nas redes sociais através do perfil pessoal deste pesquisador na rede social Facebook. Tal publicação recebeu cerca de 18 compartilhamentos feitos por outros usuários, em páginas pessoais ou grupos, além 19 curtidas e alguns comentários. Alcançou em duas semanas 98 respostas. Nas semanas seguintes, sem qualquer novo impulsionar da publicação, não foram registradas novas respostas.
O questionário anônimo contou com participantes suficientes no tempo de execução pretendido respondendo aos requisitos de análise na perspectiva da abordagem estrutural da TRS. Exigia anteriormente concordância com a política de “livre consentimento esclarecido” e declaração de ter, no mínimo, 18 anos de idade. O questionário semiestruturado com questões fechadas e abertas e tarefa de evocação livre utilizou o termo indutor “vandalismo”, objeto deste estudo.
A análise dos dados seguiu a proposta de coleta apresentada. As entrevistas e os questionários receberam nas questões fechadas tratamento estatístico apropriado através do programa SPSS® (Statistical Package for the Social Sciences), programa de análise de dados que permitiu observar as frequências e números absolutos dos dados. Nas tarefas de evocação livre, onde foi solicitado aos sujeitos que expressassem espontaneamente de três a cinco palavras que lhes viessem imediatamente à lembrança quando apresentados ao termo indutor, o material final foi analisado pela técnica de construção do quadro de quatro casas, com respostas analisadas com auxílio do programa EVOC 2003® (Ensemble de Programmes Permettant L’analyse des Evocations) que combina a frequência da evocação de cada palavra com sua ordem de evocação, buscando estabelecer o grau de saliência dos elementos da representação em cada grupo. A organização dos dados, seguindo essa orientação, ofereceu quatro quadrantes que determinaram os prováveis elementos do núcleo central na estrutura destas representações sociais. Para as questões qualitativas sobre os relatos coletados, foi realizada uma análise de conteúdo a partir da proposta de Laurence Bardin (1992)
6. RESULTADOS
Os dados gerais coletados em nossa amostra, analisados a partir das frequências simples e média com o auxílio do software SPSS®, apontam grande concentração no número de pessoas que se autodeclararam como manifestantes (47%) e simpatizantes (47%) dos movimentos que contextualizam esta pesquisa (ver Figura 1). Isto justifica-se talvez pelo método de compartilhamento adotado, através do perfil pessoal do pesquisador, que de certa maneira se implica também nas temáticas discutidas e atrai aos seus círculos de relação pessoal maior número de pessoas inclinadas a compartilhar opiniões. Também há a possibilidade de, frente a um convite como o publicado na chamada da pesquisa, os sujeitos atraídos a participar serem aqueles que mais se identificam com a temática.
Tabela 1: Autodeclaração
| Frequência | Porcentagem |
Contrário Manifestante Simpatizante Total | 6 46 46 98 | 6,1 46,9 46,9 100 |
Em relação a faixa etária, as análises revelam a média de 27 anos entre os participantes, variando de 18 para o mais novo, a 59 anos para o mais velho.
No que tange o cerne desta pesquisa, as evocações livres e as representações sociais foram vistas aqui a partir da proposta teórica de Abric (1998) e Sá (1996) acerca da abordagem estrutural, e analisadas com o auxílio do software EVOC 2003®. Tal análise apresenta como provável núcleo central das representações sociais dos entrevistados, a partir da pronta evocação dos termos (Figura 2), os elementos “depredação”, “destruição”, “manipulação da mídia” e “violência”, sendo esse último, evocação de maior frequência em nossa amostra. É possível assumir que, com dado quadro, é o teor representado pelos veículos de comunicação, tomado nas respostas associado à ideia de manipulação, que promove a grande diferenciação entre o vandalismo e a violência em geral, de uma suposta ação manifestante que seria “legítima”, talvez “pacífica”. O fato de “depredação” e “destruição” surgirem com alto grau de importância nas evocações os caracterizam como fatores descritores do fenômeno.
Na primeira periferia temos o elemento isolado “polícia”, referindo-se principalmente a Polícia Militar, força de segurança pública envolvida no controle, manutenção, mas também na dispersão e nas prisões promovidas em meio aos protestos. Este grupo, colocado aqui na primeira periferia das representações sociais do vandalismo, evidencia a corporação como primeiro grupo identificado com o fenômeno.
Na zona de contraste, chama atenção o elemento “black-bloc”, estratégia de ação direta nas ruas que envolve a resistência à dispersão praticada pelas polícias, visando sustentar o movimento, como também as ações de depredação de patrimônio símbolo do sistema capitalista, como bancos e grandes corporações, até redes de fast-food, entre outras. Este elemento surge nos discursos midiáticos e de governantes como elemento identitário de grupos manifestantes que se associam a violência e ao vandalismo, e por isso aparecem aqui como identificativos talvez de quem seriam os promotores destas ações. Além deste, “chamar atenção”, “insatisfação”, “manifestação”, “oportunismo” e quebra-quebra” compõem este grupo de representações, incluindo elementos principalmente de intencionalidade nos atos de vandalismo.
Na última periferia, os elementos “caos” e “mídia” colocam novamente a representação do discurso midiático e certa intencionalidade associada aos atos de vandalismo. Os dados apontam para a importância atribuída ao fenômeno e pela forma como posicionam-se os entrevistados frente a essas questões na sociedade. No entanto, percebemos pelas respostas uma dificuldade em se definir o que é, quando começa e de quem parte a ação reconhecida como vandalismo. Um grande grupo de respostas parece evidenciar o início desse fenômeno na construção de um discurso midiático, que tomado como manipulativo, intentaria deslegitimar as ações manifestantes focando suas notícias apenas nos atos violentos presentes nos movimentos. Logo, a identificação concreta da situação é complexa.
Tabela 2: Representação do Vandalismo
Frequência > 10 e Ordem média de evocação < 2,4 | Frequência > 10 e Ordem média de evocação > 2,4 |
Violência 28 2,321 Manipulação da Mídia 17 1,882 Destruição 13 1,615 Depredação 11 1,273 |
Polícia 15 3,000 |
Frequência > 10 e Ordem média de evocação < 2,4 | Frequência > 10 e Ordem média de evocação > 2,4 |
Black-bloc 9 2,222 Manifestação 7 2,000 Quebra-quebra 6 1,667 Chamar-atenção 4 2,250 Insatisfação 4 2,000 Oportunismo 4 1,000 |
Mídia 7 2,429 Caos 5 2,800 |
A possibilidade de dissertar livremente sobre o tema, colocada como opcional aos participantes, foi utilizada por 22,5% dos entrevistados, que avançaram no entendimento do vandalismo ancorado com o fenômeno da violência, tanto policial quanto manifestante. Com auxílio do software SPHINX®, levantou-se as palavras mais citadas nestes relatos. Assim, “manifestações” (23 ocorrências), “vandalismo” (13 ocorrências), população (8 ocorrências), violência (6 ocorrências) e mudança (5 ocorrências) aparecem como palavras mais citadas, corroborando em teor com os elementos surgidos nas evocações. Em uma simplificada análise de conteúdo, baseada na proposta de Bardin (1992), podemos perceber três grupos de resposta, ficando apenas um destes relatos sem se enquadrar em qualquer grupo (representando 4,3% do total).
Em um primeiro e menor grupo, as respostas se inclinam à possíveis justificativas dos atos de vandalismo, atribuindo responsabilidades em suas ocorrências, principalmente sobre a ação das forças de segurança pública, tomadas como repressoras, ou a falta de coordenação e lideranças dos movimentos. Pertenceriam a esse grupo 17,3% (4 relatos) do total. Um exemplo deste diz: “A violência e o vandalismo maior partem do estado”.
Já no segundo grupo, há o reconhecimento das ações de vandalismo como algo que ocorreria nas manifestações, através da participação e ingresso de manifestantes “infiltrados” ou que “não teriam motivações políticas”, atrapalhando por fim os objetivos da manifestação. Do total de relatos, 26% destinaram respostas neste sentido. Exemplifica tal grupo o seguinte relato: “para mim, o problema são pessoas que aproveitam da situação para roubar e quebrar residências e lojas que não tem conexão nenhuma com os protestos”.
E nas respostas de um último grupo, o maior deles, há a tentativa de evidenciar o fenômeno do vandalismo nas manifestações como algo construído por uma coalizão entre mídias, polícias e o Estado, que atuariam tentando desqualificar estes movimentos. Para este grupo, o vandalismo não existiria de fato como vem sendo representado pelos discursos. Pertencem a este grupo 60,1% (14 relatos) do total. Tal grupo de respostas pode ser exemplificado pelo relato: “O que a grande mídia tenta perpetrar como vandalismo é a tentativa de autodefesa de manifestantes. Vandalismo mesmo é a repressão policial covarde”.
7. ANÁLISE E CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo percorrido todo o caminho até aqui em uma leitura teórica, e analisando o conteúdo das evocações livres evidenciadas em seguida pela pesquisa, é possível traçar algumas considerações acerca das representações sociais do “vandalismo” nas manifestações sociais de junho de 2013. Os dados apresentados apontam para representações que possuem centralidade na categoria “violência”, na medida em que estas representações se associam a este fenômeno. Desde representações acerca de quem são os sujeitos envolvidos, presentes principalmente na periferia e zona de contraste destas representações (a polícia enquanto instituição, e os “black-blocs” enquanto grupo identitário que promoveriam as ações de vandalismo), até às que incidem sobre o que fazem estes sujeitos, a violência aparece como elemento que distingue, rotula e distancia os “vândalos” de um suposto manifestante comum, pacífico.
Foi possível destacar elementos utilizados para representar os manifestantes considerados associados as ações de “vandalismo”, a partir da ideia de que seriam um grupo que expressa sua “insatisfação”, procurando com suas ações “chamar a atenção” de uma forma tomada como “oportunista”, promovendo “quebra-quebra”, “depredações”, “destruição” com o objetivo de estabelecer o “caos”. Mas há também uma importante representação, possível núcleo central destas, de que toda esta galeria de elementos representam os enunciados das grandes mídias corporativas, que senão criadoras do fenômeno como se deu, teriam atuado “manipulando” a informação sobre este tornando sua violência um elemento central de divulgação das notícias sobre as manifestações sociais, construindo uma certa opinião pública negativa sobre elas e talvez as deslegitimando, abafando-as ou as reprimindo.
Em torno da categoria do “vândalo”, giraram representações que os relacionam a formação de grupos organizados, criando a ideia de tomar a ação “black bloc” como identitária para esses, os associando a grupos de bandidos, criminosos, como uma quadrilha que apenas trariam elementos negativos às manifestações. Por mais que elementos externos contribuam, a violência é remetida à grupos e comportamentos, como o uso de máscaras ou a associação a black blocs, na condição de organização criminosa.
A diferença entre as categorias de “manifestante comum” e “vândalo” pode, então, ser considerada como orientada pela categoria da violência, já que esta está presente nas representações sociais sobre o vandalismo, ou seja, o vândalo é associado a violência, enquanto o manifestante comum seria um cidadão que espera exercer seu direito a manifestação de forma pacífica.
O papel da mídia como formadora de opinião entra em questão, já que é responsável pela reprodução dos estereótipos acerca dessas dicotomias sobre a atual situação de participação nas manifestações no Brasil. A leitura realizada por setores de mídia insiste em esvaziar a discussão ético-política trazida à baila pelas marchas que vêm se intensificando no Brasil desde o mês de junho de 2013, através de um discurso polarizador que diferencia da mesma forma “manifestantes pacíficos” e “vândalos/baderneiros/terroristas”. Operar essa distinção tem produzido maneiras de perceber o mundo que justificam, diariamente, o arranjo das políticas de segurança objetivando a violenta supressão das manifestações, e são fortes influências as nossas representações sociais acerca do fenômeno. Para Coimbra e Nascimento, os meios de comunicação de massa contribuem na construção de objetos, sujeitos, saberes, verdade, e do próprio real (Coimbra & Nascimento, 2003). Assim, os sistemas de informações - e isso envolve todas as mídias, seus diversos meios de comunicação e tecnologias informacionais – impõem-se, na atualidade, como lugar central de produção do real, organizando o espaço social contemporâneo. Aquilo que não foi noticiado passa de certa forma a não ter existido, permanece fora da memória histórica (Coimbra & Nascimento, 2003).
No Brasil, é possível argumentar que as gradativas implantações de medidas neoliberais têm sido acompanhadas pelo aumento da insegurança e do medo articulados ao receio do desemprego, da exclusão, da pobreza e da miséria. Assim, ocorrências como as manifestações deflagradas pelo MPL convidam a refletir sobre esse sentimento de insegurança e exprimem os conflitos não declarados em torno dos usos e abusos da cidade como território e como experiência coletiva (Ávila & Monteiro, 2014). A maneira singular como o MPL esquivou-se à formação de lideranças ou de alinhamento com disposições políticas instituídas é um bom exemplo de como os discursos no decorrer dos acontecimentos abstiveram-se dessas “cargas ideológicas” que envolvem as lideranças.
Os vândalos foram representados como “violentos”, sem motivações políticas ou lideranças, e usuários de vestimentas que ocultariam suas identidades. Jovens que entenderiam a violência como instrumento de reivindicação a demandas sociais. Ao produzir um muro que divide “manifestantes” e “vândalos”, o discurso midiático hegemônico propõe a supressão da diversidade de pautas, e, no entanto, em um mesmo movimento, despotencializa as diferentes formas de resistências que se dão nas manifestações. O Movimento Passe-Livre em São Paulo, que inaugurou o processo de seguidas manifestações, traz como princípio a ausência de lideranças (apesar das críticas aos envolvimentos político-partidários e envolvimento com outras correntes de militância ligadas a esses). Propositadamente ou não, esses ideais sem dúvida deram o tom das ações nas ruas, que como os anarquistas, abalaram a sociedade não pelo que propunham para o futuro, mas pelo que desestabilizaram no presente.
A ausência de lideranças, combinada com a efervescência dos ideais libertários e uma deslegitimação forte dos atores políticos na figura dos partidos podem ser tomados como elementos importantes para entender este movimento como um novo analisador: conflitos dentro dos próprios protestos, principalmente sobre o que eles próprios representariam. Este desacordo fica simbolizado principalmente pelo repúdio às bandeiras dos partidos políticos durante as manifestações. A crise na representação política indireta, não exclusiva da democracia brasileira, surge como um sinal do esgotamento para com as instituições tradicionais das democracias representativas. E desse modo, as “esquerdas” não podem se esquivar de suas responsabilidades no que tange a esse desgaste.
Chama atenção ainda que, nos resultados da pesquisa, apesar do expressivo número de sujeitos simpatizantes as manifestações objeto deste estudo, os dados apresentem representações pouco positivas em relação ao vandalismo. A partir desta constatação, é possível discutir sobre as tentativas de totalização sob condutas das massas, como uma aparente ilusão. Este dado revela que, no campo das construções e crítica dos próprios movimentos, se envolver, simpatizar e apoiar determinadas ações não significa pactuar com todos os atos que a ele se envolvem.
As conclusões sobre as questões levantadas por este estudo não têm a pretensão de generalização. Entretanto, pode ser uma boa base para estudos posteriores, já que aprofunda a reflexão sobre as manifestações sociais e os fenômenos a elas associados, como a violência e o vandalismo, e contribuiu para a produção acadêmica nesta área, formulando novas questões e formas de olhar a questão. Lembramos que os dados coletados remetem, sem atingir sua totalidade, ao pensamento e discurso de um grupo específico, mas nem por isso se trata de uma amostra menos importante, já que devemos levar em conta o amplo acesso as redes sociais por todo Brasil, por todas as regiões do país.
8. REFERÊNCIAS
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BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1992.
CAVA, B. A Multidão foi ao deserto: As manifestações no Brasil em 2013. São Paulo: Annablume, 2013.
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HARVEY, D. A liberdade da cidade In: Harvey, D. Maricato, & Zizek, S. et al. Cidades Rebeldes: Passe Livre e as Manifestações que tomaram o Brasil – São Paulo: Boitempo. 2013.
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Esse artigo pode ser utilizado parcialmente em livros ou trabalhos acadêmicos, desde que citado a fonte e autor(es).
Como citar esse artigo:
ÁVILA, Raphael Ferreira de. Vandalismo entre ruas e redes: Representações sociais das manifestações de 2013 no Brasil. Revista QUALYACADEMICS. Editora UNISV; v.3, n.1, 2025; p. 84-105. ISSN 2965976-0 | D.O.I.:
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