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UMA ANÁLISE DO LUGAR DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA À LUZ DO FILME “PERDOAI-NOS AS NOSSAS OFENSAS”

Atualizado: 22 de ago.

AN ANALYSIS OF THE PLACE OF PEOPLE WITH DISABILITIES IN LIGHT OF THE FILM “FORGIVE US OUR TRESPASSES”

 

Informações Básicas

  • Revista Qualyacademics v.2, n.4

  • ISSN: 2965-9760

  • Tipo de Licença: Creative Commons, com atribuição e direitos não comerciais (BY, NC).

  • Recebido em: 21/08/2024

  • Aceito em: 21/08/2024

  • Revisado em: 22/08/2024

  • Processado em: 22/08/2024

  • Publicado em: 22/08/2024

  • Categoria: Artigo de revisão


 




Como referenciar esse artigo, Brito et al. (2024):


BRITO, Rayssa Maria Anselmo de; BARRETO, Kadydja Menezes da Rocha; OLIVEIRA, Andreia Fernandes; ANSELMO, Emanuel Soares; CLEMENTINO, Thaynara do Nascimento; SIMPLÍCIO, Raíssa Lima; CLEMENTINO, Nathália do Nascimento. Uma análise do lugar da pessoa com deficiência à luz do filme “Perdoai-nos as nossas ofensas”. Revista QUALYACADEMICS. Editora UNISV; v. 2, n. 4, 2024; p. 267-289. ISSN: 2965-9760| DOI: doi.org/10.59283/unisv.v2n4.021



Autores:


Rayssa Maria Anselmo de Brito

Orcid nº.: https://orcid.org/0000-0001-9389-6421. Professora da Universidade Federal da Paraíba. Doutora em educação, Mestre em educação e graduada em pedagogia pela UFPB. - Contato: rayssamabrito@gmail.com


Kadydja Menezes da Rocha Barreto

Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). - Contato: kadydjamenezesrocha@gmail.com


Andreia Fernandes Oliveira

Orcid nº.: https://orcid.org/0009-0003-9072-5493. Pós-doutoranda em Educação, UFCG, bolsista FAPESQ. - Contato: andreia.sankofa@gmail.com


Emanuel Soares Anselmo

Doutorando em em Ciência Política e Relações Internacionais com Mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais e Licenciatura em Ciências Sociais pela UFPB. - Contato: uelsoares1@gmail.com


Thaynara do Nascimento Clementino

Orcid nº.: https://orcid.org/0009-0007-6331-7047. Graduanda do curso Bacharelado em Psicopedagogia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). - Contato: thaynara.clementino01@gmail.com


Raíssa Lima Simplício

Orcid nº.: https://orcid.org/0009-0001-2377-5613. Graduanda em Psicopedagogia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). - Contato: raissa.simplicio@academico.ufpb.br


Nathália do Nascimento Clementino

Orcid nº.: https://orcid.org/0009-0001-8358-160X. Graduada em Comunicação em Mídias Digitais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). - Contato: nclementino.ufpb@gmail.com.

 

 



RESUMO

 

O presente artigo tem como objetivo investigar a representação das pessoas com deficiência ao longo da história, focando especialmente nos paradigmas de exclusão e inclusão social, com uma análise crítica do curta-metragem “Perdoai-nos as Nossas Ofensas”. A metodologia adotada é qualitativa, utilizando a análise crítica do discurso de Fairclough para interpretar as práticas discursivas e sociais apresentadas no filme, contrastando-as com a realidade contemporânea. A justificativa da pesquisa reside na necessidade de compreender como os discursos históricos de exclusão ainda ressoam nos dias atuais, perpetuando práticas capacitistas e intolerantes. Os principais resultados indicam que, apesar dos avanços no paradigma da inclusão, os resquícios de processos excludentes permanecem presentes na sociedade, destacando a importância de uma educação crítica que promova a justiça social e a inclusão plena das pessoas com deficiência.

 

Palavras-chave: Inclusão; Capacitismo; Educação Crítica.

 

ABSTRACT

 

The present article aims to investigate the representation of people with disabilities throughout history, focusing especially on the paradigms of exclusion and social inclusion, with a critical analysis of the short film "Forgive Us Our Trespasses." The methodology adopted is qualitative, utilizing Fairclough's critical discourse analysis to interpret the discursive and social practices presented in the film, contrasting them with contemporary reality. The justification for the research lies in the need to understand how historical discourses of exclusion still resonate today, perpetuating ableist and intolerant practices. The main results indicate that, despite advances in the inclusion paradigm, remnants of exclusionary processes remain present in society, highlighting the importance of a critical education that promotes social justice and full inclusion of people with disabilities.

 

Keywords: Inclusion; Ableism; Critical Education.

 

1. INTRODUÇÃO

 

A prova da moralidade de uma sociedade é oque ela faz por suas crianças. (Bonhoeffer)

 

No percurso histórico das pessoas com deficiência ao longo da história da humanidade e de seus processos civilizatórios pode-se identificar quatro grandes paradigmas: a exclusão total, a segregação institucional, a integração e a inclusão (Sassaki, 2006).


Se olharmos de modo ainda mais atento para esse percurso histórico (desde as sociedades primitivas até os dias atuais) e seus sujeitos sociais, constatamos que as pessoas com deficiência eram vistas de diversas maneiras de acordo com cada paradigma, mas que em comum a todos estes paradigmas estavam as relações assimétricas de poder, que diferenciavam e seguem diferenciando as pessoas com deficiência das pessoas sem deficiências.


No paradigma da exclusão total, por exemplo, pessoas com deficiência eram exterminadas ou excluídas totalmente dos espaços de vivências sociais, sendo negados em sua humanidade. Essas pessoas eram consideradas possuidoras de maus espíritos ou até mesmo representando uma “maldição” para as comunidades que as acolhessem.


Olhar, a partir dos dias atuais, para este fato pode nos provocar profundo espanto e indignação. No entanto, não podemos perder de vista que a conjuntura da época - estruturações sociais de forma nômade - e os valores e princípios cultivados nesse período histórico explicam-nos todo este cenário. Então, embora sejamos atravessados pela dureza desse período histórico, não podemos correr o risco de aqui cometer juízos de valor mediante uma análise anacrônica.


Logo, no paradigma da exclusão total não havia lugar para a pessoa com deficiência e esse era um palco para uma série de intolerâncias e processos excludentes para com tais sujeitos.


No paradigma da segregação institucional, começamos a ver que as pessoas com deficiência não eram mais exterminadas ou assassinadas como acontecia com o paradigma anterior, contudo, ainda lhes eram negados espaços sociais, de modo que essas pessoas eram excluídas e levadas ao convívio em outros espaços separados da sociedade e de suas famílias.


Aqui refletimos que, embora não se negasse à humanidade das pessoas com deficiência, inclusive as observando como sujeitos sociais, o olhar para elas e para seus corpos ainda eram olhares bastante capacitistas, na expectativa de cura ou de normalização deste corpo. É nesta época em que vemos se fortalecer o modelo clínico de representação da pessoa com deficiência.


Assim, o lugar da pessoa com deficiência no paradigma da segregação institucional era sempre em instituições especializadas e separadas, localizadas inclusive geograficamente distantes de suas famílias, restringindo seus convívios sociais, os quais muitas vezes estavam atrelados e/ou restritos ao contato com seus pares, pessoas com deficiência similares ou parecidas.


No terceiro paradigma, a integração institucional, vemos que essas pessoas com deficiência começam agora a permanecer em suas casas, em suas famílias, e sendo inseridas em instituições regulares de ensino, todavia, permanecem sendo vistas de forma diferente dos demais, não convivendo com os outros estudantes sem deficiência e não tendo a possibilidade de vivências e trocas com pessoas sem deficiência.


Assim, o uso de espaços sociais como igrejas, escolas, parques, praças e entre outros, por parte das pessoas com deficiência, segue sendo condicionado a apenas aqueles cuja deficiência fosse facilmente disfarçada ou que não causasse incômodo algum. Pessoas com deficiências mais severas, com dificuldades de socialização ou de comportamento, seguiam sendo isoladas, em casa ou em instituições especializadas.


Cabe salientar que nesse paradigma encontram-se garantidos a matrícula do estudante com deficiência nas escolas regulares, contudo, era o estudante quem precisava se adequar à escola, de modo que se ele não conseguisse essa adequação, o sucesso ou o seu fracasso estaria unicamente sobre seus “ombros”.


Refletindo sobre o lugar da pessoa com deficiência no paradigma da integração escolar, vemos que embora essas pessoas comecem a ocupar um lugar social, este ainda não é um lugar efetivo de participação plena, uma vez que sua participação estaria condicionada ao nível de comprometimento de sua deficiência.

 

Por último, temos o paradigma da inclusão educacional, o qual reclama um lugar de protagonismo para as pessoas com deficiência, e que esta deve ocupar todos os espaços sociais que desejar ou precisar (Sassaki, 2006). Paradigma que fomenta a percepção dessas pessoas como sujeitos de direito que têm e que devem ter garantidos os direitos à vida, à saúde e, principalmente, à educação.

Assim, esse artigo se propõe a refletir sobre esse processo histórico, entendendo que o mesmo não é linear, mas marcado de avanços e retrocessos. Nosso enfoque maior ficará sob os processos sociais de exclusão total e inclusão, porque observamos nestes paradigmas um antagonismo de um processo social instável e ainda ameaçado.


Refletimos sobre os constantes discursos que vemos sobre qual lugar da pessoa com deficiência em nossas escolas, em nossa sociedade, em nossas comunidades e nos demais espaços.


Neste estudo, especificamente, nos propomos a analisar ao filme “Perdoai-nos as nossas ofensas”, disponível na plataforma de streaming Netflix. Vemos que este filme retrata o período histórico do nazismo, e que, trazendo aos dias atuais, tais valores e crenças perpassam todos os espaços sociais, entre eles a escola - como retratado no filme.


 Para tanto, nos propomos a realizar uma análise crítica dos discursos de um texto multimodal que é o filme de curta metragem, de modo que trazemos neste artigo alguns recortes de falas ou de cenas extraídas deste filme e com as quais trabalharemos de forma mais analítica.

 

2. ASPECTOS METODOLÓGICOS

 

O presente artigo se propõe a ser delineado sobre o olhar da pesquisa qualitativa (Silva e Menezes, 2001), considerando a possibilidade de construir inferências a partir de um fenômeno social. Para tanto, nos valemos da pesquisa documental, compreendendo que o filme “Perdoai-nos as nossas ofensas” se constitui como artefato documental a ser analisado, discutido e contraposto face ao cenário dos dias atuais.


Como proposta de análise, trazemos a Análise Crítica do Discurso (Fairclough, 2016), a qual se propõe a refletir criticamente sobre os discursos que se materializam nas imagens, nos textos, nas práticas discursivas, presentes no material em questão. Textos esses que tencionam relações de poder e revelam problemas sociais, assim como possíveis formas de superação destes. Sendo assim, usamos a categoria da interdiscursividade, uma vez que todas as práticas discursivas relacionam-se entre si, pois quer seja olhando para um passado recente (o qual é retratado no filme), quer seja olhando para nossa sociedade nos dias atuais, vemos que o lugar da pessoa com deficiência segue sendo questionado, invisibilizado e ameaçado constantemente.


Na ótica dos analistas críticos do discurso, nosso ponto de partida é um problema social, no caso desse estudo específico o problema social que ressaltamos são os processos excludentes das pessoas com deficiência na história da humanidade, em específico no recorte histórico do nazismo retratado no filme, fazendo um contraponto com os dias atuais. E nesta perspectiva, observamos resquícios desses processos sociais de exclusão da pessoa com deficiência, bem como a existência de práticas capacitistas e intolerantes.

 

3. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA OBRA “PERDOAI-NOS AS NOSSAS OFENSAS”

 

O filme “Perdoai-nos as nossas ofensas”, dirigido pela americana Ashley Eakin, foi lançado em 2022, na plataforma de streaming Netflix. O interesse de Ashley por temáticas referentes à defesa e representatividade de pessoas com deficiência está relacionado à sua rara condição óssea (doença de Ollier e síndrome de Maffucci).


Peter, o protagonista do filme, é uma criança alemã com deficiência física, que não possui o braço direito. “Perdoai-nos as nossas ofensas” tem como cenário o governo do Terceiro Reich (1933-1945), mais precisamente em meio ao programa de eugenismo e eutanásia, historicamente conhecido como Aktion T4, que iniciou-se em 1939 e findou-se junto ao governo nazista. Serrano e Shimoda (2021) apresentam como fundamentadoras do programa as palavras do jurista alemão Karl Binding (1841-1920), juntamente com o psiquiatra alemão Alfred Hoche (1865-1943), em seu livro “A licença para a aniquilação da vida sem valor de vida:


sua medida e sua forma”, no qual as pessoas com deficiências têm suas vidas valoradas negativamente em razão de características físicas ou intelectuais não compatíveis com a raça ariana, sendo consideradas fardos para si próprios, para suas famílias e para toda a sociedade, levando em consideração gastos financeiros anuais gerados pelos institutos que tratam esses indivíduos e seus impactos para a sociedade alemã.

O curta-metragem se inicia com uma ambientação de uma sala de aula, com uma bandeira nazista estendida ao fundo e um quadro do ditador Hitler, de modo que a professora e as crianças problematizam uma questão matemática, cujo problema consiste em uma situação imposta pelo “currículo nazista”.


Em conformidade com os interesses do Terceiro Reich, líder do Estado da Alemanha nazista, que evidenciava essa intenção ao declarar que “O Estado deve controlar esse instrumento de educação popular com vontade firme e pô-lo ao serviço do Governo e da nação” (Hitler, 1941, p. 336). 


Na cena seguinte, o desconforto da professora é compreendido quando aparece orando o Pai-nosso junto ao seu filho, Peter. Ao ouvir o trecho “perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”, citado pela mãe, Peter questiona se a isto inclui o perdão aos nazistas e se a mãe acredita no discurso transmitido pelo currículo da aula da cena anterior.


À medida que, ao cumprir seu papel de mãe, que ama e zela pelo seu filho, ela tenta ensiná-lo o ato mútuo de perdão, em uma perspectiva cristã e moral, mesmo no contexto de perseguição política em que o mesmo se encontra, ela também pede a compreensão de seu filho com relação aos discursos compartilhados em sala de aula, enquanto cumpre seu papel como professora, portanto, subordinada ao currículo imposto pelo governo.


De acordo com Lopez, Ortega e Mattos (2020), o ensino centralizado durante o governo tinha como finalidade evitar que outras ideologias conflitantes fossem disseminadas entre os estudantes. Dessa forma, para que o currículo fosse compartilhado adequadamente, os professores encontravam-se em constante vigilância. Assim, à mãe é imposta a obrigatoriedade de compartilhar discursos monológicos, homogeneizadores e reguladores das práticas sociais, mesmo que não reflitam suas convicções, a fim de manter sua profissão e sua família em segurança.


No entanto, seguir a doutrinação imposta e demonstrar publicamente sua fidelidade ao nazismo não foi suficiente para garantir a segurança de seu filho. Na cena seguinte, enquanto está na cozinha de casa, a mãe ouve soldados questionando sobre sua família. Imediatamente a mãe pede ao filho que fuja até um celeiro para receber ajuda.


Deste modo, o curta se encerra apresentando a fuga do menino Peter, sua luta braçal com o soldado alemão e, no movimento de flashback, cenas de sua trajetória são retomadas na tela.

 

4. O CURRÍCULO QUE SE MATERIALIZA NO FILME

 

Em meio às imagens e sons do filme, o currículo ganha vida, transformando-se de um conceito abstrato em uma realidade tangível. As cenas capturam o processo educacional de um currículo determinado pelo Estado, no qual podemos observar não só a estrutura hierárquica implícita na composição do currículo educacional, regido por imposições externas, mas também o contexto sócio-histórico do regime totalitário do partido nazista, conforme instituído no roteiro do curta-metragem.

           

Para Goodson (1971, p. 20), “O currículo escrito é o testemunho público e visível das racionalidades escolhidas e da retórica legitimadora das práticas escolares”. Dito isso, o curta-metragem evidencia que o currículo é uma construção social elevada às práticas educacionais, afastando-se da vitalidade científica e propondo uma ideologia que influencia e limita o pensamento crítico, moldando os valores e as intenções das concepções sobre educação e cidadania conforme propõe o currículo.

           

De acordo com Sacristán (2013), a construção do currículo está distante do sistema educacional como um todo, desatando a coesão que define a estrutura do ensino e aprendizagem, de modo que ele afirma:

 

Quando o currículo é uma realidade gestionada e decidida a partir da burocracia que governa os sistemas educativos, principalmente nos casos de tomadas de decisões centralizadas, é lógico que os esquemas de racionalização que essa prática gera sejam aqueles que melhor podem cumprir com as finalidades do gestor (Sacristán, 2000, p. 33).

 

Com a obrigatoriedade do novo currículo, as disciplinas escolares passaram a refletir essa ideologia. O patriotismo deveria partir diretamente dos professores para com as suas classes. Os alunos eram alvos desse controle de massa desde os primeiros anos escolares, sendo rigorosamente instruídos a servir à nação socialista (Witt; Vicente, 2018). No filme, isso é exemplificado por uma aula de matemática em que, além dos cálculos, os estudantes eram incentivados a usar a lógica para resolver supostos conflitos sociais.


Este enfoque refletia o custo econômico de manter uma pessoa com deficiência na sociedade alemã. Embora o protagonista fosse alemão, ele possui uma deficiência que o excluía dos demais, conforme a ideologia eugênica da época.  A cena na escola culmina com um estudante propondo uma solução genocida para o problema levantado, mostrando como essas ideias eram transmitidas e naturalizadas entre os jovens.


Isso evidencia o poder da educação em moldar crenças extremas, e como o sistema educacional pode ser instrumentalizado para justificar práticas desumanas sob uma lógica de racionalidade social. Assim, a formação do indivíduo está atrelada a complexa rede de poder organizacional, são conceitos que remetem à forma como o mesmo é situado dentro de uma estrutura social e como essa posição molda sua percepção e relação com a verdade (Foucault, 2006).

Em face desta discussão, analisamos a seguir seis cenas desse filme, traçando sempre que possível o diálogo paralelo com a realidade dos dias atuais:

 

Cena 1 - Cálculo do custo de vida de uma criança com deficiência



Fonte: Imagens extraídas extraído do filme Perdoai-nos as nossas ofensas, 2022.

 

Na sanha de promover e sustentar a herdada ideia da superioridade da raça ariana, o nazismo desenvolveu de forma sistemática sua política eugenista. Nesta direção, ações como a esterilização em massa de pessoas com doenças hereditárias e/ou traços genéticos indesejáveis e a morte de pessoas com deficiências físicas e mentais aconteceram em larga escala, por meio de um programa de eutanásia já citado anteriormente.


Para conseguir a anuência da população, o estado empenhou-se por defender e divulgar o quão oneroso era para a sociedade o sustento dessas pessoas. Dentre as formas e espaços de divulgação desta ideia estava o espaço escolar, instituição por excelência para propagação ideológica do Estado. Quanto a tal estratégia, considera Medeiros (2020, p. 620):


Argumentava-se sob o ponto de vista econômico, de que o governo gastava muito para cuidar das pessoas doentes, inclusive com atividades escolares para crianças e jovens que pediam cálculos da quantidade de dinheiro gasto pelo governo com pessoas doentes, como uma forma de convencer a população e legitimar as ações do Estado.

 

As falas destacadas neste excerto do filme por grifos nossos, a saber: “qual é o prejuízo financeiro para o povo alemão?”; “Mata eles”; “tem alguma solução mais produtiva e humana?”, demonstram a ação do estado de legitimar suas práticas por meio do currículo vivenciado no espaço escolar e as tensões decorrentes disso.


De acordo com Santomé (2013), quando o currículo educacional não se foca nos processos emancipatórios e democráticos como fonte de promoção da justiça social, torna-se metaforicamente o Cavalo de Troia da Educação. No caso em tela, uma educação manipuladora e alienante, como é perceptível na Cena 1 por nós destacada, em que a professora calcula o custo de vida de um membro da família com alguma “doença hereditária”. A síntese matemática apresentada em sala de aula conduz rapidamente a conclusão do prejuízo financeiro para a manutenção de uma criança com deficiência.


A rigor de um currículo controlado e imposto pelo sistema opressor, a resposta imediata para a arguição apresentada pela professora em relação ao problema matemático, o qual remeteu a um fato social relevante naquele tempo histórico, promoveu o questionamento por parte de um estudante (Karl), que disse: “bom, se custa tanto assim para cuidar dessa gente, o que a gente faz?”. E a resposta imediata do outro estudante foi: “mata eles”. Santomé (2013) nos alerta para as intervenções curriculares inadequadas em que as instituições escolares produzem e reproduzem o discurso da discriminação, do ódio e da exclusão, conforme vimos na cena de “Perdoai-nos as nossas ofensas” (2022).


Em Educação e Emancipação, Adorno (2024, p. 15) indaga “Como pôde um país tão culto e educado como a Alemanha de Goethe desembocar na barbárie nazista de Hitler?”. Em seguida, o autor afirma que quando a educação não caminha em sentido a práticas educativas que levem aos estudantes para a autonomia, a formação poderá conduzir ao contrário da emancipação, ou seja, à barbárie. O nazismo é o exemplo cabal da dominação da educação através de um currículo controlado pelo discurso manipulador e, consequentemente, pelos processos de desumanização. Neste currículo, coube inclusive a política de queima de livros e destruição de tudo e de todos que ameaçassem a ordem política vigente.


É importante salientar que a sala de aula é um espaço de construção de saberes, que tanto pode levar à condução de reflexões da sociedade para a autonomia, emancipação e práticas democráticas, quanto para processos desumanizantes e com possibilidades de ações pautadas na discriminação, no preconceito, no racismo, na misoginia, etc. Adorno nos convida a escapar dessas armadilhas, e Santomé nos orienta a ter cuidado com propostas curriculares que são verdadeiros cavalos de Tróia.


Não obstante, o espaço escolar também é propício para desenvolver ações de resistência a tais práticas desumanizantes e, ao mesmo tempo, legitimar experiências de inclusão e promoção da justiça social. Neste sentido, longe de uma perspectiva de uniformização, controle e imposição, cabe a todas as pessoas, a nós, construirmos um sistema educativo comprometido com projetos curriculares de combate a qualquer forma de discriminação, conforme Santomé nos provoca na citação a seguir:


Construir um sistema educativo justo, que respeite a diversidade e que esteja comprometido com projetos curriculares que combatem a discriminação implica, entre outras medidas, prestar muita atenção às políticas de recursos didáticos, materiais curriculares, para que não funcionem como cavalo de Tróia, cujos conteúdos não seriam aceitos pelos docentes, estudantes e suas famílias se estivessem conscientes das manipulações, dos erros e dos preconceitos ocultos em seu interior (Santomé, 2013, p.226).

 

Perdoai-nos as nossas ofensas” é um alerta para o nunca mais. É um convite à resistência, ao combate a práticas desumanizantes e é um chamado para a implementação de conteúdos curriculares que funcionem intencionalmente em favor de um mundo mais humano e inclusivo.


Em análise sobre o lugar da pessoa com deficiência nos dias atuais à luz dessa cena, vemos que o currículo escolar pode ser espaço para problematizar e humanizar sujeitos no sentido de compreender a importância do respeito do outro, do diferente. Assim, se a prática social elucidada se refere aos processos excludentes perpetuados em nossa sociedade, as práticas discursivas a exemplo da voz da professora na cena em questão, a qual discorda da solução dada pelo aluno, provoca-nos a contrapor essa lógica exata e capitalista a uma lógica mais humana e inclusiva.

 

Cena 2 - Mãe e filho: diálogo e oração



Fonte: Imagens extraídas extraído do filme Perdoai-nos as nossas ofensas, 2022.

 

Pessoas com deficiência e outras identidades tinham seu direito à existência perversamente sequestrado. Genocídio em massa dos diferentes e das diferenças. Na classificação de Medeiros (2020, p. 620): “grupos humanos indesejáveis, como judeus, gays, ciganos, negros e deficientes físicos e mentais”.  A tal genocídio se imprimia um discurso científico, e assim conclui Hill (apud Oliveira, 2003, p.74): “Hitler chegou ao poder porque possibilitou que os cidadãos alemães encarassem seus sonhos de destruição como sendo ciência com fundamentos biológicos”. Um imaginário social eugenista e, portanto, racista, fundamentado cientificamente, disseminado e consolidado como projeto e processo de aprendizagem.


Na esteira das perversas medidas de purificação, Medeiros (2020, p. 620) aponta a existência de ações voluntárias de ingresso neste processo. Há registro de indivíduos que voluntariamente pediam a esterilização para si e também de famílias que concordavam com a morte de seus entes queridos, mas a resistência a esse projeto também estava presente e provavelmente em maior parte. No filme em análise, a resistência está presente de muitas maneiras.


Ao analisar com mais atenção à cena em questão, vemos que a prática social evidenciada é a de um momento familiar de cunho religioso, professado por mãe e filho. Como podemos ver, no diálogo transcrito, há a evidência de uma educação dialógica e crítica, o que permite que Peter, a criança, possa questionar sua mãe sobre verdadeiras convicções. Este diálogo nos revela não apenas a sua discordância, quanto ao currículo imposto, como também a provocação para que seu filho pense por si mesmo, ou seja, que não seja coagido a crer naqueles valores e crenças impostos por este regime totalitário, mas que compreenda o valor inestimável de sua vida.


Destacamos ainda no excerto acima o discurso de que “Nenhum tipo de cálculo pode mensurar o valor de uma vida…”, nessa perspectiva, a mãe de Peter nos provoca a refletir sobre o valor conferido a seu filho, enquanto indivíduo com deficiência física, cujo corpo foge ao normativo padrão. Tal prática discursiva situada no contexto histórico em questão ao ser trazida para os dias atuais nos provoca a refletir sobre qual o valor da vida temos conferido às pessoas com deficiência e aos demais sujeitos marginalizados de nossa sociedade.


Como vimos no percurso histórico da pessoa com deficiência já descrito neste artigo, a vida, a humanidade e a dignidade de tais sujeitos sempre esteve em xeque, na berlinda, conferindo a estes indivíduos menor ou nenhum valor. O mesmo discurso serve também para refletir e reafirmar a importância de políticas públicas para a garantia de direitos das pessoas com deficiência, como é o caso do direito à educação.

 

Cena 3 - A fuga



Contextualização: Peter foge de casa em direção ao celeiro em um terreno coberto de neve e árvores sem folha, enquanto passa próximo a uma ponte de madeira, se depara com soldados nazistas tentando passar com um tanque de guerra. Os soldados estão preocupados com as condições da ponte, não estão certos de que a ponte esteja segura o suficiente para que eles passem por ela com o tanque. O menino consegue passar sem ser visto e se encontra escondido debaixo da ponte. Os soldados desistem de passar pela ponte e vão em outra direção, assim o menino segue seu caminho pela neve em direção ao celeiro.

Fonte: Imagens extraídas extraído do filme Perdoai-nos as nossas ofensas, 2022.

 

Esta cena faz parte do esquema de captura e extermínio que o estado empreendia e da resistência a tal captura.  No tocante ao extermínio de pessoas com deficiência, Medeiros (2020, p. 620) destaca a amplitude das frentes de captura de pessoas e a arbitrariedade na escolha de quem morreria:


A legislação, por outro lado, foi aplicada de forma arbitrária e muitas pessoas que não tinham doenças hereditárias foram castradas, uma vez que eram consideradas indesejáveis para a comunidade do sangue puro, pois poderiam colocar em xeque a superioridade da raça ariana, dentre elas: esquizofrênicos, depressivos, epiléticos, pessoas com cegueira e surdez hereditárias, além de deficiências físicas e mentais. Pessoas que tinham comportamentos reprováveis pelo regime nazista eram consideradas “deficientes morais” e também foram esterilizadas compulsoriamente, como prostitutas, alcoólatras e criminosos comuns. Famílias eram obrigadas a entregar os seus doentes para os tribunais de esterilização, assim como médicos também deveriam entregar seus pacientes, caso contrário, corriam o risco de ser impedidos de desempenhar a profissão.

 

A fuga do menino é parte do processo de resistência da sua mãe e dele próprio em não se deixar ser capturado, exterminado pelo Estado. Na cena, é possível perceber as estratégias construídas por ambos, não apenas na preparação de um esconderijo (o celeiro), como também na construção de um disfarce que tornasse seu braço com deficiência imperceptível, como retrata a cena a ser analisada a seguir.

 

Cena 4 - O encontro



Fonte: Imagens extraídas extraído do filme Perdoai-nos as nossas ofensas, 2022.

 

Nesta cena, podemos refletir sobre o processo de normalização dos corpos das pessoas com deficiências, levando-os a buscar um corpo que atenda ao que é imposto como normativo e padrão. Tal reflexão relaciona-se diretamente com o modelo médico de representação da pessoa com deficiência, segundo o qual a deficiência se centra no indivíduo, e é percebida enquanto “uma desvantagem que incapacita as pessoas, impedindo-as de levar uma vida independente e de exercer os direitos reservados a todos que vivem em sociedades democráticas” (Prychodco, 2020, p. 28). Desse modo, tais sujeitos são representados pelas partes que lhes faltam, a exemplo do menino Peter, o braço direito completo. Nesta direção, ele vai buscar uma prótese e um casaco para disfarçar a deficiência e, assim, resistir, preservar a sua vida.


Nos dias atuais, observamos que tais práticas discursivas são ainda bastante endossadas por nossa sociedade, à medida que os padrões normativos estabelecidos seguem conferindo uma ordem discursiva do que vem a ser socialmente aceito como “corpos desejáveis”. Todavia, temos percebido uma mudança discursiva à medida que pessoas com deficiências começam a ocupar lugares sociais de destaque em espaços como na política, nas instituições e nas redes sociais, trazendo representatividade e voz para a luta contra o capacitismo. Neste processo emancipatório, o próprio lugar das próteses tem sido reconfigurados e as práticas discursivas construídas têm colaborado para que tais próteses não sejam mais invisibilizadas ou escondidas, mas que sejam ressaltadas em sua premissa de oferecer mais funcionalidade e beleza a este corpo.


Ao chegar no celeiro, Peter se depara com uma mulher que, por suas características físicas, não possui os traços arianos valorizados pelo regime nazista e, por isso busca a invisibilidade para preservar a vida. A situação conflitante emerge uma urgência para ser resolvida, pois logo serão descobertos pelos soldados nazistas que estão revistando o celeiro.


Ao tomar consciência do perigo, em um ato de coragem e determinação, Peter, consciente da sua própria segurança, se arrisca para salvá-la. Deixa seu casaco com a mulher, sai do celeiro e chama atenção dos guardas para si. Há entre eles um pacto de resistência, diz Peter à mulher: Fica aqui. Vou despistar eles para você. Tal cena reflete a tensão moral e o perigo aturado no qual os personagens se encontram, salientando não apenas o perigo eminente, mas a sobreposição às divisões étnicas impostas pela ideologia nazista.


A luta pela diversidade e a visibilidade de corpos divergentes à norma não pode ser uma luta solitária, mas se fortalece à medida que os vários movimentos sociais em suas ações interseccionais se conjugam para a promoção da vida, da diversidade em detrimento de modelos hegemônicos de invisibilidade de quem foge ao padrão estabelecido. 


Uma educação solidária, comprometida com paradigmas que valorizem a pluralidade de corpos colabora para a emancipação dos diversos sujeitos, mediante a construção de discursos, olhares e práticas que resistem, desmontando a ideia de um padrão universal do que é ser humano para com isso, aumentar a consciência das situações de opressão (Moreira e Câmara, 2011), denunciar práticas discriminatórias de diversas naturezas e construir lógicas de inclusão e valorização da diversidade, como parte de uma educação em e para os direitos humanos. 

 

Cena 5 - Saudação e golpe



Descrição: Após fugir do soldado alemão, o menino levanta seu braço direito, imitando o movimento em saudação nazista, em seguida repete a saudação: “-  Heil, Hitler.” Em seguida, ambos entram numa luta braçal, até que o menino golpeia o policial com o braço com prótese.

Fonte: Imagens extraídas extraído do filme Perdoai-nos as nossas ofensas, 2022.

 

O curta possui alguns simbolismos. Não parece ser por acaso o fato do braço que o protagonista não possui ser o direito, que é o mesmo com o qual é feita a saudação nazista. Em uma das cenas, em um ato de desespero, ele utiliza sua prótese para fazê-la. Ele e sua mãe não concordavam com a ideologia vigente, o que os primeiros minutos do filme deixam evidente. Esse ato teria sido uma tentativa de fazer-se parecer semelhante aos olhos daquele que o ameaçava, para quem sabe, se livrar da punição que estava por vir.


Há uma característica animal chamada mimetismo, a qual determinadas espécies imitam fisicamente ou comportamentalmente outras espécies. Com os seres humanos não é diferente, o nosso instinto de sobrevivência nos leva a reproduzir comportamentos para sermos socialmente aceitos (Merleau-Ponty, 2001). No filme, vemos o movimento de saudação, como um processo racional e intencional de responder ao soldado de acordo com a ordem discursiva em que ele operava.

Não é à toa essa característica física e nem o contexto em que ele se encontrava, não são uma "coincidência" do roteiro, uma vez que podemos inferir sobre a semelhança entre o braço direito amputado, ser o mesmo braço direito a ser levantado no movimento da saudação nazista. Faltava tanto o braço direito quanto o apreço ao Estado totalitário imposto por Hitler, que perseguiu e matou pessoas como ele.

 

Cena 6 - Sem ar e vestido



Descrição: Em meio luta braçal, Peter é sufocado pelo soldado nazista, que aperta o pescoço do menino. Enquanto luta por respirar, sem conseguir falar, memórias dos últimos acontecimentos preenchem, em alta velocidade, o pensamento de Peter. Ele não fala, mas ao pensar, consegue agir. Num movimento de resistência e luta por sobrevivência, o menino mata o policial. A história segue com o menino tendo a sua prótese em evidência na cena onde rouba a faca e o casaco do soldado agora morto, ele está prestes a seguir seu caminho quando olha para trás emitindo um suspiro de alívio em seguida segue seu caminho de resistência e sobrevivência. Em contraponto a isso, aparecem na tela informações sobre o programa de eutanásia e esterilização que atingiu milhares de pessoas, das quais muitas eram crianças.

Fonte: Imagens extraídas extraído do filme Perdoai-nos as nossas ofensas, 2022.


A Alemanha, antes mesmo de Hitler, estava imersa na ciência eugenista denominada Higiene Racial (Oliveira, 2003), e foi desses ideários cientifico que os projetos de esterilização e eutanásia se desenvolveram como já tratado no artigo. Afirma a professora Fátima Oliveira (2003, p.72) que:


A ciência biológica produzida na Alemanha, bem antes de Hitler, já estava convencida da cientificidade da superioridade da raça ariana. O encontro dessa “ciência” com os anseios políticos de Hitler é um mero detalhe de uma paixão recíproca.

           

A luta entre o soldado nazista e Peter é a iconografia da luta entre raças que os ideários eugenistas, que sustentaram essa pseudociência, promoveram. A raça ariana, na crença e na luta para a preservação de sua pretensa superioridade, exterminou, calou tudo o que colaborasse para que sua superioridade fosse posta em risco. Era preciso sufocar, silenciar a divergência.

           

O ideário da superioridade de uma raça em detrimento de outras não é algo que começou ou terminou com o fim do nazismo, ainda hoje o racismo estrutura a sociedade (Almeida, 2019) e corpos divergentes à norma são silenciados. Entre estes corpos estão as pessoas com deficiência.

           

Tanto a educação quanto o espaço escolar reúnem em si potências de silenciamento e de resistência para que vozes historicamente silenciadas já não mais assim estejam. Conforme pontua Xavier Filha (apud Ferrari e Marques, 2011, p. 6) sobre silenciamento e educação:  “o processo de silenciamento é produzido por estratégias, dispositivos, práticas e discursos, que afetam os sujeitos na construção de sua subjetividade”.

           

Peter, no filme, resistiu ao silenciamento. A professora Xavier Filha (idem, p.7) também discorre sobre resistências a afirmar que: “apesar da tentativa de muitas pessoas de silenciar e docilizar corpos e saberes, há alunas e alunos que resistem. As formas de resistência são as mais diversas e quase sempre interpretadas como atos de indisciplina, revolta ou mesmo apatia.

           

Para o romper os silêncios e silenciamentos da escola e de uma educação repressora Akkari e Silva (2011) apontam, entre outras possibilidades, a importância da valorização dos corpos em suas diversas expressões e a necessidade de que essa quebra de silenciamento seja em âmbito mais global, cultural, perpassando toda sociedade. Neste sentido, os professores questionam: “se a sociedade não proporciona o direito à dignidade e à palavra para todos, como esperar da escola, que é sempre uma instituição social ou uma sociedade em miniaturas, ser mais aberta?” (Akkari; Silva, 2011, p. 68).


As mudanças sociais perpassam por um rememorar compactuado com a emancipação e a transformação social. Foi o rememorar que fez com que Peter não se rendesse. Ao se pensar uma educação para nunca mais, o rememorar, o não esquecer, o reconstruir a memória é garantir o direito de saber, de conhecer para não mais se reproduzir. Assim considera Tavares (2022, p. 101):


É fundamental, desse modo, buscar as formas de incorporar ao sistema educativo a memória social para que as novas gerações sejam capazes de desenvolver reflexões e sentimentos democráticos, de defesa do Estado de Direito e de defesa dos direitos humanos; o que implica o desafio de abordar fatos e conteúdos, mas também as dores, os valores e os sonhos de seus protagonistas.

 

No rememorar pedagogicamente comprometido com a construção de lógicas e práticas humanizadas e humanizantes, elimina-se os sufocamentos, os silenciamentos malignos para que novos ares de justiça e dignidade encham pulmões e gargantas que lutam na multiplicidade de vozes e corpos em busca de um mundo inclusivo.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Por fim, vemos que a própria ideia do filme de registro/denúncia desse horror, por si só, já configura um ato de resistência para o nunca mais. Mas, ao mergulharmos na história, no enredo, nos deparamos com exemplos outros de resistência individuais e familiares: as ações da mãe - professora, a da mulher no celeiro, as resistências múltiplas de Peter, só corroboram a constatação presente no diálogo dos soldados nazistas que perseguem Peter.


Na esteira da resistência, De Azevedo e Koehler (2021) destacam os religiosos - católicos e protestantes. A epígrafe do filme é de autoria de Dietrich Bonhoeffer, pastor da Igreja Luterana, engajado na resistência contra o regime nacionalsocialista alemão, que acabou preso por conta de sua atuação e morreu dia 9 de abril de 1945, 21 dias antes do suicídio de Hitler.


Em uma das cartas que Bonhoeffer recebeu na prisão, reunidas no livro Resistência e Submissão (Bonhoeffer, 2003, p. 312), Eberhard Bethege, pastor que também foi capturado pela Gestapo e ficou preso por um tempo, escreveu:


A guerra escolhe para si - agora vejo a destruição e o modo implacável com que tudo é tragado - os locais mais bonitos. Não existe mais nenhuma consideração. Mulheres e crianças erram famintas à beira das estradas e pedem pão. E em tudo isso eu estou envolvido? A maioria está totalmente insensível a isso. Que tarefa: formar pessoas novamente! (grifo nosso).

Desse modo, retomamos a cena final do filme, em que o menino vestido com a roupa do soldado alemão segue fugindo pelo campo aberto, correndo em luta por sua vida, em um final imagético que parece deixar-se em aberto. Todavia, vemos que o desfecho da história é retratado na obra, e, na história da humanidade, ao que o filme revela: “Em 1939, Hitler implementou o Aktion 4, o que levou ao assassinado de mais de 300 mil pessoas com deficiência e a esterilização de outras 400.000…” (Perdoai-nos as nossas ofensas, 2022).


O final trágico do filme, nos aponta não apenas a história de Peter, como também as de muitas outras pessoas exterminadas à época. Relembrar de suas vidas e mortes, nos trazem ao debate e a reflexão sobre o valor da vida de tais indivíduos.

Em tempos de intolerância, de preconceito escancarado e de ameaças a um possível retorno aos paradigmas segregacionista e excludentes, vemos que refletir sobre esta questão constitui-se numa prática contra hegemônica de resistência, sobretudo, no campo educacional.


Há que se retomar as palavras de Bonhoeffer (2003) e lembrar que só há um caminho nesse processo de construção e transformação social, a saber: formando pessoas novamente, e a educação - não qualquer educação, a educação para o nunca mais - é sem dúvida, o melhor e maior caminho.

 

6. REFERÊNCIAS

 

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Paz e Terra, 2024.

AKKARI, Abdeljalil; SILVA, Camila Pompeu. Para romper com o silêncio na escola: corpo, currículo e cultura. In: FERRARI, Anderson, MARQUES, Luciana Pacheco (orgs.). Silêncios e educação. Juiz de Fora/MG: Editora UFJF, 2011. pp. 53-70.

 

ALMEIDA,  Silvio  Luiz  de. Racismo  Estrutural. São Paulo:  Ed.  Jandaíra -Coleção Feminismo Plurais (Selo Sueli Carneiro), 2020.

 

BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. Editora Sinodal, 2003.

 

DE AZEVEDO, Aleksandro Peixoto; KOEHLER, Carlos Benevenuto Guisard. Eugenia na Alemanha nazista: o racismo como política de estado. Revista Scientiarum Historia, v. 1, p. 8-8, 2021.

 

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2016.

 

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 2006.

 

GOODSON, I. F. O currículo em mudança estudos na construção social do currículo. Tradução: Maria João Carvalho. Lisboa: Educa, 1971. p.20. Disponível em:http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/sem_pedagogica/fev_2014/NRE/1construcao_social_do_curriculo.pdf. Acesso em 17 ago.de 2024.

 

HITLER, A. Mein Kampf. New York: Reynal & Hitchcock, 1941. p.336.

 

LOPEZ, Felipe Sanches; ORTEGA, José Luis Nami Adum; MATTOS, Cristiano. Ensino de ciências como controle do estado: o caso da Alemanha nazista. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências (Belo Horizonte), v. 22, p. e19654, 2020.

MEDEIROS, Gabriel Saldanha Lula de. A mentalidade hitlerista: como se formou o ideário político nazista. Id On Line–Revista multidisciplinar e de Psicologia, v. 14, n. 49, p. 615-633, 2020.

 

MERLEAU-PONTY, M. Le structure du comportement. Paris: PUF: Quadrige, 2001.

 

MOREIRA, Antônio Flávio; CÂMARA, Michelle Januário. Reflexões sobre currículo e identidade: implicações para a prática pedagógica. In: MOREIRA, Antônio Flávio; CANDAU, Vera Maria (orgs.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. 7ªed. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2011.

OLIVEIRA, Fátima et al. Saúde da população negra. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, v. 114, 2003.

 

PERDOAI AS NOSSAS OFENSAS. Direção: Ashley Eakin. Produção: Aaron Barnett. Estados Unidos: Netflix, 2022, son. color. Legendado. (Drama).

 

PRYCHODCO, Robson Celestino. Influência dos modelos biomédico, social e biopsicossocial nas concepções e práticas de intervenção direcionadas à inclusão escolar. 2020. 277 f. Tese (Doutorado em Saúde, Interdisciplinaridade e Reabilitação e Doutorado em Ciências da Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas com cotutela na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto Campinas – SP, 2020.

 

SACRISTÁN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Tradução: Emani F. da F. Rosa. 3ed. Porto Alegre: ArtMed, 2000.

 

SACRISTÁN, J. G. Saberes e incertezas sobre o currículo. Tradução Alexandre Salvaterra; revisão técnica: Miguel González Arroyo. Porto Alegre: Penso, 2013.

 

SANTOMÉ, Jurjo Torres. Currículo escolar e justiça social: o cavalo de Troia da educação. Penso Editora, 2013.

 

SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: Construindo uma sociedade para todos. 7. ed. Rio de Janeiro: WVA, 2006.

 

SHIMODA, Caio Yukio; SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto.  As repercussões hermenêuticas da tradição do conceito de pessoas com deficiência: medidas de exceção através da manipulação da linguagem. Suffragium – Revista do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, v. 12, n. 20, 2021. Disponível em: https://suffragium.tre-ce.jus.br/suffragium/article/view/139/54. Acesso em: 17 ago. 2024.

 

SILVA, Edna Lúcia da e MENEZES, Estera Muszkat. Metodologia da Pesquisa e Elaboração de Dissertação. 3a edição revisada e atualizada. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção. Laboratório de Ensino a Distância. 2001.

 

TAVARES, Celma. EDUCAR PARA O NUNCA MAIS: experiências educativas em lugares de memória na Argentina, Brasil e Chile. Momento-Diálogos Em Educação, v. 31, n. 01, p. 95-115, 2022.

 

VICENTE, Gabriele Alves; WITT, Marcos Antônio. A educação na Alemanha durante o Terceiro Reich e seu papel na doutrinação das crianças e jovens. Revista Conhecimento Online, v. 1, p. 71-87, 2018.

 

XAVIER FILHA, Constantina. Prefácio. In: FERRARI, Anderson, MARQUES, Luciana Pacheco (orgs.). Silêncios e educação. Juiz de Fora/MG: Editora UFJF, 2011. pp. 53-70.

 

 

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publicação de artigo científico

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Como citar esse artigo:


BRITO, Rayssa Maria Anselmo de; BARRETO, Kadydja Menezes da Rocha; OLIVEIRA, Andreia Fernandes; ANSELMO, Emanuel Soares; CLEMENTINO, Thaynara do Nascimento; SIMPLÍCIO, Raíssa Lima; CLEMENTINO, Nathália do Nascimento. Uma análise do lugar da pessoa com deficiência à luz do filme “Perdoai-nos as nossas ofensas”. Revista QUALYACADEMICS. Editora UNISV; v. 2, n. 4, 2024; p. 267-289. ISSN: 2965-9760| DOI: doi.org/10.59283/unisv.v2n4.021


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