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Lucas da Silva Oliveira

DESCONSTRUINDO O DIREITO PENAL DO INIMIGO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA TEORIA DE GÜNTHER JAKOBS

DECONSTRUCTING THE ENEMY PENAL LAW: A CRITICAL

ANALYSIS OF GÜNTHER JAKOBS' THEORY





Como citar esse artigo:


OLIVEIRA, Lucas da Silva. Desconstruindo o direito penal do inimigo: uma análise crítica da teoria de Günther Jakobs. Revista QUALYACADEMICS. Editora UNISV; v.1, n. 3, 2023. p. 124-135. ISBN 978-65-85898-26-3 | D.O.I.: doi.org/10.59283/ebk-978-65-85898-26-3



Autor:



Lucas da Silva Oliveira

Mestrando em Direito pela UNIFIEO, Mestrando em Filosofia pela UFABC, Bacharel em Direito pela USJT, especialista em Direito Penal pela PUC-MG – Contato: lucasoliver300@hotmail.com



RESUMO


O presente artigo apresenta uma análise crítica sobre a teoria do Direito Penal do Inimigo proposta pelo jurista Günther Jakobs, explorando-a como uma manifestação de estado de exceção onde as normas jurídicas permanecem vigentes, mas são suspensas em sua aplicação. Jakobs propõe a desvinculação de determinados indivíduos do conceito de pessoa, transformando-os em objetos de perigo e justificando a aplicação de um regime jurídico excepcional. O trabalho argumenta que essa abordagem é insuficiente e problemática, particularmente quando confrontada com a Constituição brasileira, que não consegue abordar a essência do problema. A pesquisa emprega a estratégia da desconstrução, conforme desenvolvida por Jacques Derrida, para criticar e desmantelar a construção teórica de Jakobs. Esta abordagem busca revelar e explorar a tensão entre a racionalidade instrumental do funcionalismo penal e a racionalidade ética da alteridade. O objetivo é demonstrar que o Direito Penal do Inimigo constitui uma forma de violação dos princípios fundamentais do direito, especialmente no que tange aos direitos humanos e às liberdades individuais.


Palavras-chave: Direito Penal do Inimigo; Günther Jakobs; Estado de Exceção; Desconstrução; Constituição brasileira; Ética da Alteridade.


ABSTRACT


This article presents a critical analysis of the Enemy Criminal Law theory proposed by the jurist Günther Jakobs, exploring it as a manifestation of a state of exception where legal norms remain in force but are suspended in their application. Jakobs suggests the disassociation of certain individuals from the concept of personhood, transforming them into objects of danger and justifying the application of an exceptional legal regime. The paper argues that this approach is insufficient and problematic, particularly when confronted with the Brazilian Constitution, which fails to address the essence of the problem. The research employs the strategy of deconstruction, as developed by Jacques Derrida, to critique and dismantle Jakobs' theoretical construction. This approach aims to reveal and explore the tension between the instrumental rationality of penal functionalism and the ethical rationality of alterity. The goal is to demonstrate that Enemy Criminal Law constitutes a form of violation of fundamental legal principles, especially concerning human rights and individual freedoms.


Keywords: Enemy Criminal Law; Günther Jakobs; State of Exception; Deconstruction; Brazilian Constitution; Ethics of Alterity.


1. INTRODUÇÃO


Em 1985, Günther Jakobs, destacado jurista, inaugurou um paradigma disruptivo no campo jurídico com a publicação de "Kriminalisierung im Vorfeld einer Rechtsgutverlezung" ("Criminalização no estágio prévio à lesão de um bem jurídico"). Nesta obra, ele articulou, pela primeira vez, a teoria do "Direito Penal do Inimigo", contrastando-a, de maneira crítica, com o Direito Penal aplicado ao cidadão. Esta concepção visava delimitar os contornos materiais de uma tendência legislativa que antecipa a punibilidade, aproximando-a de uma fase pré-delitiva e equiparando, quase que de forma equivalente, as penalidades às hipóteses de tentativas de delitos graves (JAKOBS, 1985).


A dualidade proposta por Jakobs residia na percepção do delinquente ora como cidadão, com sua liberdade otimizada, ora como inimigo, representando uma fonte de perigo. Argumentava-se que a teoria do bem jurídico, responsável por tal antecipação punitiva, necessitava de uma revisão crítica, a fim de assegurar a proteção da esfera privada do cidadão (GRECO, 2005. p. 83 - 84).


Embora a recepção inicial deste artigo tenha sido predominantemente positiva, a evolução do pensamento de Jakobs, particularmente evidente em seus comentários durante as Jornadas de Berlim de 1999 e em publicações subsequentes como "Direito penal do cidadão e Direito penal do inimigo" (2003), indicou uma transição na interpretação de sua teoria, agora considerada mais descritiva e reconhecida como um "mal menor".


O ponto de partida deste trabalho, após a apresentação da teoria de Jakobs, assenta-se na premissa de que o Direito Penal do Inimigo configura uma espécie de estado de exceção, caracterizado pela suspensão da ordem jurídica sem a revogação formal de suas normas. Será argumentado que, não obstante a discussão acerca da constitucionalidade desta formulação - que contrasta flagrantemente com os princípios fundamentais do texto constitucional - a análise não deve se restringir ao plano técnico-jurídico. O que Jakobs propõe, em essência, é a suspensão do ordenamento jurídico, em especial o constitucional, diante da presença do "Inimigo", figura esta despersonalizada e marginalizada, o que, por conseguinte, justificaria a inaplicabilidade dos diversos princípios limitadores do Poder Punitivo. O penalista alemão sugere, assim, a criação de um Direito Penal paralelo ao ordenamento jurídico geral, regido pelas normas próprias de um contexto bélico.


2. DIREITO PENAL DO INIMIGO: APROXIMAÇÃO TEÓRICA


O jusfilósofo Günther Jakobs instigou um intenso debate jurídico na esfera da dogmática penal ao postular o reconhecimento do "Direito Penal do Inimigo". Esta teoria propõe a desvinculação de determinados indivíduos do conceito tradicional de pessoa, relegando-os à categoria de objetos de perigo, em resposta a uma falha percebida na pacificação interna. Jakobs, embasando-se no modelo luhmanniano de sociedade, interpreta o Direito Penal como um mecanismo de preservação da identidade normativa do corpo social. Segundo esta visão, a sociedade não deve ser entendida a partir da consciência individual ou do sujeito, mas sim como um processo comunicativo centrado em normas (NETO, 2007).


Em sua teoria sistêmica, Jakobs parte do pressuposto de que as sociedades contemporâneas são marcadas por uma complexidade intrínseca. Para gerir as ações humanas neste contexto, torna-se necessário implementar mecanismos de redução dessa complexidade, sendo os sistemas sociais um desses instrumentos. O Direito, neste cenário, estabelece os limites que configuram a sociedade, impondo restrições comportamentais para prover segurança cognitiva aos indivíduos (exemplificada por normas como a proibição de homicídio, desrespeito a sinais de trânsito ou invasão de propriedade alheia) (JAKOBS, 2003. pp. 10-11).


A pena, dentro deste quadro teórico, assume uma função de reafirmação da ordem jurídica. O delito é compreendido como uma violação das normas que formam a identidade normativa, e a pena emerge como a resposta necessária para reiterar a vigência dessa ordem. Para Jakobs, o foco do Direito Penal reside na manutenção da norma, mais do que no bem jurídico afetado pelas condutas criminosas. O significado da conduta, portanto, transcende a lesão externa, conferindo à pena um caráter simbólico de resposta ao ato delitivo (NETO, 2007).


Nessa linha, o autor de um crime é concebido como um agente racional e, portanto, tratado como pessoa, o que torna imperativa a resposta penal. No entanto, o Direito Penal do Inimigo, segundo Jakobs, diverge do Direito Penal aplicável ao cidadão. Este regime excepcional é destinado àqueles que negam de forma contínua a adesão à ordem jurídica, ameaçando a integridade do sistema. Jakobs argumenta que nem todo Direito Penal se configura como Direito Penal do Inimigo (2003. pp. 22).


A perspectiva de Jakobs encontra eco nas reflexões dos filósofos contratualistas. Ele estabelece um contraste entre pensadores como Rousseau e Fichte, que vislumbram todo Direito Penal sob a ótica do inimigo, e filósofos como Kant e Hobbes, que discernem entre dois regimes distintos. Na concepção de Rousseau e Fichte, o criminoso, ao violar o contrato social, deixa de ser membro da sociedade e passa a ser tratado como inimigo. Hobbes, por outro lado, mantém o criminoso na condição de cidadão, exceto em casos de rebelião ou alta traição, onde o contrato de submissão ao soberano é ameaçado, conduzindo a um retorno ao estado de natureza e à consequente desqualificação do criminoso como cidadão (2003. pp. 25).


Jakobs observa que o legislador alemão já adota medidas características do Direito Penal do Inimigo em áreas como criminalidade econômica, terrorismo, crimes sexuais e crime organizado. Nestes casos, o criminoso não proporciona a mínima garantia cognitiva para ser tratado como pessoa. A resposta jurídica, neste contexto, é a eliminação de um perigo, com a periculosidade do agente sobressaindo sobre a culpabilidade. Sob essa ótica, Direito Penal e Processo Penal assumem a forma de medidas de guerra contra tais indivíduos (2003. 26-27).


Finalmente, Jakobs (2003. pp. 34-35) desafia o discurso em torno dos direitos humanos dos "inimigos". Ele argumenta que nenhum país alcançou a implementação plena dos direitos humanos, que ainda se encontram em fase de consolidação. Como os "inimigos" representam obstáculos a essa implementação, eles não estariam aptos a usufruir desses direitos, evocando a ideia contratualista que fundamenta sua teoria.


Assim, em apertada síntese, a tese de Günther Jakobs sobre o "Direito Penal do Inimigo" (2003. pp. 45-48) enfatiza que, no Direito Penal do cidadão, a função manifesta da pena é a contradição da infração, enquanto no Direito Penal do inimigo, o foco é a eliminação de um perigo. Tais tipos ideais são raros em sua forma pura, mas ambos têm legitimidade em contextos distintos. No âmbito do Direito natural e contratualismo estrito, conforme interpretado por Rousseau e Fichte, todo delinquente é considerado um inimigo. Contudo, para manter um destinatário para as expectativas normativas, Hobbes e Kant argumentam que é preferível preservar, em princípio, o status de cidadão para aqueles que não se desviam significativamente. Jakobs postula que indivíduos que se comportam de forma consistentemente desviada não fornecem garantia de comportamento pessoal confiável. Por isso, eles não devem ser tratados como cidadãos, mas sim combatidos como inimigos.


Por fim, este combate é justificado pelo direito dos cidadãos à segurança, diferenciando-se da pena, pois exclui o inimigo do âmbito jurídico. Existem também paralelos entre as tendências opostas no Direito Penal e situações análogas no Direito processual. Jakobs defende que um Direito Penal do Inimigo claramente delimitado é menos prejudicial ao Estado de Direito do que a incorporação de elementos do Direito Penal do inimigo em todo o sistema penal. Finalmente, Jakobs observa que a punição internacional ou nacional de violações dos direitos humanos, mesmo após uma troca política, apresenta características do Direito Penal do inimigo. No entanto, isso não torna tais punições automaticamente ilegítimas (2003. pp. 49-50).


3. DIREITO PENAL DO INIMIGO COMO ESTADO DE EXCEÇÃO


Giorgio Agamben sugere que o estado de exceção perdeu seu caráter emergencial e passou a se integrar à normalidade. Essa situação, conforme Agamben, abre caminho para uma nova interpretação do estado de exceção, não apenas como uma técnica de governo oposta à ideia de uma medida extrema, mas também como um elemento intrínseco da ordem jurídica (AGAMBEN, 2004. pp. 18).


A teorização do Direito Penal do Inimigo, por sua vez, é um indício de que as considerações de Agamben encontram relevância no contexto contemporâneo. Jakobs, ao diferenciar conceitualmente entre cidadão e inimigo, almeja estabelecer dois regimes distintos no âmbito do Direito Penal: um aplicável ao cidadão, com as garantias e direitos constitucionalmente assegurados, e outro destinado aos inimigos, a quem seria conferido um tratamento beligerante. Estes últimos, desprovidos da qualificação de “pessoa”, não usufruiriam dos direitos e garantias previstos nas legislações. Em suma, Jakobs reconhece a existência de uma “duplicidade” constante e inerente no ordenamento jurídico, permitindo a coexistência simultânea de um Estado de Direito e um Estado de Exceção. Deste modo, o Direito Penal do Inimigo se manifesta como uma emergência, paradoxalmente contínua, no núcleo da ordem jurídica (NETO, 2007).


É por meio do conceito de pessoa que Jakobs consegue estabelecer esta distinção entre o Direito Penal do Inimigo e as normas constitucionais, mantendo estas últimas em um estado de suspensão.


Assim, a aparente necessidade que Agamben (2004) identifica como não sendo essencial ao estado de exceção encontra justificativa na alegada falta de pacificação interna. Portanto, surge a questão de como é viável esvaziar o significado do termo “pessoa”, conforme previsto no texto constitucional, para, nesse contexto, coexistir um Direito Penal do Inimigo.


Para responder tal indagação imprescindível as considerações de Moises Pinto Neto:


A “pessoa”, segundo Jakobs, passa a ser um conceito normativo. A sociedade seria um arranjo configurado, construída a partir de um contexto comunicacional. A identidade desse contexto seria mantida, por isso, não como um “estado”, mas simplesmente por meios das regras de comunicação. Rechaçando as construções que oporiam subjetividade concreta e sociabilidade, Jakobs airma que é equivocado contrapor-se as condições de constituição de subjetividade às condições de constituição da sociabilidade (“aqui liberdade” versus “aqui sociabilidade”), pois sem uma sociedade em funcionamento não há condições empíricas da subjetividade. Em outros termos: a contraposição entre individual e social é falaciosa. Nesse contexto, a pessoa entra enquanto um papel a ser desempenhado (NETO, 2007).

Portanto, a identidade da pessoa não é determinada pela sua subjetividade, mas sim pelo conjunto de expectativas sociais institucionalizadas. É na interação com as normas que se forma a relação entre os sujeitos; estas normas constituem o que se pode considerar como o “mundo objetivo”. Neste contexto, os sujeitos são percebidos como portadores de funções, ou seja, como pessoas. Assim, sob a perspectiva da sociedade, não são as pessoas que fundamentam a comunicação pessoal a partir de si próprias, mas sim a comunicação pessoal que define os indivíduos enquanto pessoas.


A síntese da construção teórica de Jakobs pode ser resumida em sua afirmação de que “O correspondente complexo de normas é o que constitui os critérios para definir o que se considera uma pessoa.” Ao definir a pessoa como um “complexo de normas” cujos critérios são estabelecidos pelo poder político, Jakobs inadvertidamente cria uma brecha para a infiltração do estado de exceção. Baseia-se na noção de que o “inimigo não é pessoa”, já que se orienta de forma contrária aos fatos estabelecidos, negando a aplicação de quaisquer direitos a ele (JAKOBS, 2003. pp. 47 - 48).


Consequentemente, o Estado pode adotar duas abordagens com os delinquentes: pode vê-los como pessoas que cometeram um delito, um erro, ou como indivíduos que devem ser coibidos de destruir o ordenamento jurídico. Ambas as perspectivas possuem sua legitimidade em determinados contextos, o que implica que também podem ser utilizadas de forma inadequada (2003. pp. 42).


Jakobs, ao promover um “esvaziamento” normativo do conceito de pessoa, abre caminho para a instauração de um regime de exceção, no qual cabe ao soberano a tarefa de distinguir entre quem deve ser tratado como pessoa e quem não deve. Esta visão está em sintonia com a previsão de Walter Benjamin:


o estado de exceção torna-se regra à medida que a distância entre a lei (direitos fundamentais) e sua aplicação (definição de quem é inimigo) depende exclusivamente de uma decisão com “força de lei” do soberano. Assim, no coração da normalidade, instaura-se a exceção. Inclusive a decisão que classifica o indivíduo como “pessoa” ou “cidadão” passa pelo estado de exceção, que, com seu efeito duplo, se converte em regra. Com a existência da cisão entre o Direito Penal do cidadão e o Direito Penal do Inimigo, estabelece-se inexoravelmente a exceção total, uma vez que toda decisão acerca da aplicação de uma lei estabelecida será submetida ao julgamento do soberano, a quem compete a aplicação da lei (JAKOBS, 2005. pp. 57).

4. A DESCONSTRUÇÃO DE DERRIDA


A abordagem da desconstrução, conforme desenvolvida por Jacques Derrida, se distingue significativamente das metodologias tradicionais de crítica interna ou externa. Esta singularidade reside no fato de que a desconstrução opera em um espaço ambíguo, situado entre o interno e o externo, desestabilizando a própria dicotomia que os separa.


A desconstrução, então, emerge como uma estratégia voltada para expurgar elementos associados ao “falogocentrismo” ou à metafísica da presença, revelando-os por meio dos traços textuais. Em vez de aderir a uma leitura autorizada e vinculada à “intenção” do autor, a desconstrução redefine as relações dos traços do texto sobre outras bases, privilegiando um traçado não-autorizado. Essa abordagem concentra-se especificamente sobre o texto, sem recorrer a elementos históricos ou arqueológicos. Trata-se de uma forma de racionalidade que não busca estabelecer um conhecimento unificado e sistêmico, contextual e histórico, mas sim em reconhecer e retornar à pluralidade inerente da razão (NETO, 2007).


Neste contexto, a desconstrução não se limita a uma crítica corrosiva dos textos analisados, mas também procura extrapolá-los a partir de seus próprios limites. Como observa Richard Rorty:


Seu grande tema é a impossibilidade do fechamento. Ele adora mostrar o seguinte: sempre que um filósofo apaixonadamente dá forma a um novo modelo de esfera perfeita de Parmênides, algo escapole ou vaza. Há sempre um suplemento, uma margem, um espaço no interior do qual o texto da filosofia é escrito, um espaço que estabelece as condições de inteligibilidade e a possibilidade da filosofia (RORTY, 2005. pp. 127).

A análise de Jacques Derrida (1996, p. 20-22) foca-se na interação com textos, não em oposição a eles, revelando seus limites intrínsecos. Essa abordagem não busca identificar uma característica metafísica essencial dos textos, como se estes se desconstruíssem automaticamente. Ao contrário, trata-se de uma metodologia desenvolvida por Derrida para elucidar, por meio de uma leitura atenta e integrada dos textos, a inerente impossibilidade de um fechamento conceptual completo. Esta técnica destaca que os elementos linguísticos considerados parasitas, anomalias ou defeitos não são meras inconsistências passíveis de correção ou exclusão, mas aspectos fundamentais da estrutura textual.


A desconstrução, segundo Derrida (1996, p. 20-22), busca trabalhar com o texto, não contra ele. Neste contexto, conceitos como "diferença" e "traço" apontam para uma estratégia que não busca necessariamente capturar a intenção original do autor, mas sim para traçar um caminho alternativo de interpretação. Essa abordagem se distancia de uma perspectiva metafísica, evitando atribuir ao texto uma origem ou finalidade definida, e se concentra em repensar o texto fora das categorias tradicionais da onto-teologia.


No contexto do Direito Penal do Inimigo, a aplicação desta metodologia envolve a materialização dos conceitos, retirando-os de suas abstrações e inserindo-os no contexto da vida real. Isso permite que seus limites e riscos sejam mais claramente percebidos e criticados. Embora essa abordagem difira da utilizada por Derrida na filosofia, em que ele confrontava a filosofia com o que ela não é, o objetivo subjacente permanece similar: provocar um transbordamento de ideias (NETO, 2007).


Por fim, ao permitir a incursão de outras disciplinas humanísticas na desconstrução, busca-se alcançar o mesmo propósito: introduzir e explorar a alteridade no texto através de sua expansão. Esta busca por alteridade é alinhada com a filosofia de Emmanuel Levinas, confrontando a realidade com a "face do Outro", um conceito central em sua obra (LÉVINAS, 2005, pp. 149-150).

Com efeito:


O inter-humano está também na providência de uns em socorro com os outros, antes que a alteridade prestigiosa de outrem venha banalizar-se ou ofuscar-se num simples intercâmbio de bons comportamentos que se terão como 'comércio interpessoal' nos costumes (...). É na perspectiva inter-humana de minha responsabilidade pelo outro homem, sem preocupação com reciprocidade, é no meu apelo e socorro gratuito, é na assimetria da relação de um ao outro (LÉVINAS, 2005, pp. 141-142).

Nesse sentido, o pensamento filosófico de Emmanuel Lévinas, focado na ética da alteridade, oferece uma abordagem revolucionária e fundamental para a responsabilidade ética. Este enfoque rompe com a tradição filosófica ocidental que tende a centralizar-se no ser, ao invés de se abrir para o outro. Lévinas propõe um humanismo renovado, pautado na solidariedade, responsabilidade e respeito ao outro, considerando a alteridade como relação ética fundamental (LÉVINAS, 2005, pp. 149-150).


A ética da alteridade de Lévinas não é apenas um conceito teórico, mas uma prática vivida nas relações interpessoais, onde o "eu" se torna responsável pelo cuidado do outro. Esta abordagem ética valoriza a dignidade humana em todas as suas dimensões e desafia a individualização e a violência, promovendo uma responsabilidade infinita e intransferível pelo bem-estar do outro (LÉVINAS, 1980, p. 229).


O princípio da alteridade de Lévinas se manifesta de maneira mais explícita na epifania do rosto do outro, que demanda justiça e acolhimento sem indiferença. O rosto, nesta perspectiva, não é apenas uma expressão física, mas um símbolo da identidade única e da comunicação autêntica que convoca à ação ética. Esta visão ética implica uma luta contra a exclusão e a violência, enfatizando a necessidade de reconhecer e valorizar a singularidade de cada indivíduo, além de promover justiça e equidade nas relações humanas (LÉVINAS, 1980, pp. 190-191) .


Portanto, conclui-se que a desconstrução do Direito Penal do Inimigo, quando vista sob a luz da ética da alteridade de Lévinas, revela uma interseção crítica entre filosofia e jurisprudência. Enquanto o Direito Penal do Inimigo tende a desumanizar o "outro" ao classificá-lo como adversário e, portanto, reduzi-lo a um objeto de controle e opressão, a ética levinasiana insiste na irredutível humanidade e dignidade de cada indivíduo. Ao aplicar a perspectiva da alteridade, desconstruímos a lógica punitiva e excludente desse modelo penal, substituindo-a por uma abordagem que prioriza o cuidado, a responsabilidade e o reconhecimento da singularidade de cada pessoa. Assim, a integração do pensamento levinasiano no Direito Penal pode promover uma justiça mais humana e ética, que respeita a alteridade e combate a desumanização inerente ao conceito do inimigo.


5. APORTES INICIAIS PARA A DESCONSTRUÇÃO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO


No contexto das discussões anteriores envolvendo a ética da alteridade de Lévinas e a desconstrução do Direito Penal do Inimigo, surge uma análise crítica da abordagem jurídica de Jakobs. O Direito Penal do Inimigo, caracterizado como um estado de exceção, revela a fragilidade das normativas jurídicas diante do biopoder e da personificação do "inimigo". A teoria de Jakobs, embora desafiada pela argumentação jurídica tradicional, requer uma desconstrução mais profunda, incluindo uma análise ética, como propõe Moises Pinto Neto (2007).


Dessa maneira, a teoria do Direito Penal do Inimigo, conforme delineada por Jakobs, não é adequadamente confrontada apenas através de um prisma positivista-constitucional. A abordagem deve transcender a aplicação estrita da Lei Fundamental, reconhecendo a natureza do Direito Penal do Inimigo como um estado de exceção que revela deficiências nas concepções normativas da lei e suas limitações frente ao biopoder. A formulação explícita de Jakobs, apesar de sua clareza, levanta a questão sobre a possibilidade de enfrentar suas versões mais sutis e implícitas. Seguindo a perspectiva de Moises Pinto Neto (2007), a desconstrução é vista como um imperativo de justiça, exigindo que se questione o texto de Jakobs não só em seus desafios epistemológicos, mas também no plano ético. Assim, o Direito Penal do Inimigo deve ser confrontado levando em conta tanto suas limitações lógicas quanto as implicações da justiça para o "Outro" silenciado.


Neste contexto, é essencial abordar a teoria a partir de uma perspectiva interna ao sistema legal. Entretanto, a prioridade reside em desafiar a racionalidade que fundamenta tal teoria. Emmanuel Levinas se torna uma referência crucial nesse processo, enfatizando a importância da dimensão ética na desconstrução do Direito Penal do Inimigo. A confrontação com o "Rosto do Inimigo" – uma representação de paz que transcende nossos modelos intelectuais e representacionais – é central para finalizar o processo desconstrutivo. No mundo concreto, as ideias de Jakobs são criticadas não apenas por sua exagerada inconsistência, mas também por suas implicações éticas e pela forma como sufocam o "Outro" em uma narrativa totalizante que o reduz a uma mera representação (2007).


Assim, busca-se uma compreensão que previne a replicação de estruturas jurídicas similares ao Direito Penal do Inimigo. Através de uma racionalidade renovada no pensamento jurídico, procura-se desfazer a divisão conceitual entre Inimigo e cidadão e estabelecer, por meio do direito positivo, novas formas de entender os problemas político-criminais emergentes. Este esforço representa um diálogo entre Direito e Filosofia, visando construir a abordagem proposta.


Por fim, a desconstrução, vista como uma exigência de justiça, demanda a desnaturalização do texto de Jakobs, confrontando-o não apenas em termos epistemológicos, mas também éticos. A abordagem levinasiana introduz uma dimensão ética crucial, focando na figura do "Outro" silenciado. Este processo de desconstrução visa desmantelar a racionalidade subjacente ao Direito Penal do Inimigo e reformular a compreensão jurídica, almejando uma justiça mais inclusiva e representativa. Este diálogo entre Direito e Filosofia é crucial para reconstruir o entendimento dos problemas político-criminais contemporâneos.


6. CONCLUSÃO


A teoria proposta por Günther Jakobs apresenta um risco notável ao fornecer base jurídica para práticas que remetem ao totalitarismo, ancorando a sociedade em conceitos que visam impor uma uniformidade social incompatível com a aceitação da diversidade, caracterizando-se como um tipo de engenharia social. Em essência, tal formulação indica a formação de um Estado destituído de ética.


Em resposta, a ideia de hospitalidade surge como um critério mais incisivo do que a tolerância, especialmente na maneira como o estrangeiro é acolhido em sua singularidade, ultrapassando os limites do sistema jurídico e demandando justiça através do Rosto/Olhar interpelativo do outro. Este conceito do 'impossível' define o 'possível', colocando o Direito Penal em um estado de aporia constante, onde sua reconstrução e desconstrução são necessárias para se tornar mais humano e alinhar-se com o artigo 1º, inciso III, da Constituição (BRASIL, 1988). Assim, a dignidade humana não é reduzida a um mero jogo de palavras, mas se torna uma demanda primária que impulsiona o Direito em direção a uma justiça contínua e expansiva.


7. REFERÊNCIAS


AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.


DERRIDA, Jacques. La Diferencia, p. 04; BENNINGTON, Geofrey. Jacques Derrida. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.


GRECO, Luís. Sobre o chamado direito penal do inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 56, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.


JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo. In: Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. JAKOBS, Günther & MELIÁ, Manuel Cancio. Tradução: André Callegari e Nereu Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.


JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa. trad. Marco Antônio R. Lopes. Barueri: Manole, 2003.


Lévinas, E. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade. 2 ed. Petrópolis: Vozes. 2005.


Lévinas, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70. 1980.


PINTO NETO, Moysés da Fontoura. O rosto do inimigo: uma desconstrução do direito penal do inimigo como racionalidade biopolítica. 2007. 212 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.


RORTY, Richard. Desconstrução e Artimanha, p. 127. Ver: CRITCHLEY, Simon. The Etics of Desconstruction: Derrida and Levinas, 2005.


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Esse artigo pode ser utilizado parcialmente em livros ou trabalhos acadêmicos, desde que citado a fonte e autor(es).



Como citar esse artigo:


OLIVEIRA, Lucas da Silva. Desconstruindo o direito penal do inimigo: uma análise crítica da teoria de Günther Jakobs. Revista QUALYACADEMICS. Editora UNISV; v.1, n. 3, 2023. p. 124-135. ISBN 978-65-85898-26-3 | D.O.I.: doi.org/10.59283/ebk-978-65-85898-26-3


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