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Renato Madeira Reis

A VINCULAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DAS TEORIAS DE EFICÁCIA

Atualizado: 19 de nov.

THE BINDING OF FUNDAMENTAL RIGHTS IN THE DEMOCRATIC RULE OF LAW: A CRITICAL ANALYSIS OF EFFECTIVENESS THEORIES





Informações Básicas

  • Revista Qualyacademics v.2, n.6

  • ISSN: 2965976-0

  • Tipo de Licença: Creative Commons, com atribuição e direitos não comerciais (BY, NC).

  • Recebido em: 16/11/2024

  • Aceito em: 17/11/2024

  • Revisado em: 18/11/2024

  • Processado em: 18/11/2024

  • Publicado em: 18/11/2024

  • Categoria: Estudo de Revisão



Como citar esse material:


REIS, Renato Madeira; BRITO, Maria de Betânia Sousa. A vinculação dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica das teorias de eficácia. Revista QUALYACADEMICS. Editora UNISV; v.2, n.6, 2024; p. 83-104. ISSN 2965976-0 | D.O.I.: doi.org/10.59283/unisv.v2n6.007



Autores:



Renato Madeira Reis

Mestrando em Direito Internacional pela Universidad Autônoma de Assunção. – Contato: madeirareis1983@gmail.com


Maria de Betânia Sousa Brito

Mestranda em Direito Internacional pela Universidad Autônoma de Assunção. – Contato:



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RESUMO


O presente estudo propõe uma análise crítica da evolução histórica das teorias de vinculação dos direitos fundamentais no contexto do Estado Democrático de Direito, com enfoque nas dimensões de eficácia vertical, horizontal e diagonal desses direitos. Serão apresentados o contexto histórico, os fundamentos teóricos, as principais críticas, os efeitos e a aplicabilidade prática dessas teorias. O estudo também buscará esclarecer os pontos de tensão e confluência na teoria contemporânea da eficácia diagonal, indagando se esta configura uma teoria autônoma ou se deve ser considerada uma extensão da teoria da eficácia horizontal. Para tanto, será realizada uma análise detalhada das doutrinas pertinentes, com o intuito de definir e compreender a problemática proposta. A pesquisa é estruturada a partir das perspectivas do Estado Democrático de Direito, analisando as influências das políticas liberais e comunitaristas, bem como o desenvolvimento histórico das referidas teorias e sua adequação aos contextos históricos específicos em que se inserem.

 

Palavras-Chave: Eficácia; Direitos fundamentais; Segurança jurídica; Estado de Direito.


 

ABSTRACT

 

The present study proposes a critical analysis of the historical evolution of theories concerning the binding nature of fundamental rights within the context of the Democratic Rule of Law, with a focus on the dimensions of vertical, horizontal, and diagonal effectiveness of these rights. The historical context, theoretical foundations, key criticisms, effects, and practical applicability of these theories will be examined. The study will also seek to elucidate the points of tension and convergence in the contemporary theory of diagonal effectiveness, questioning whether it constitutes an independent theory or should be viewed as an extension of horizontal effectiveness theory. To this end, a detailed analysis of the relevant doctrines will be conducted to define and understand the proposed issue. The research is structured around the perspectives of the Democratic Rule of Law, examining the influences of liberal and communitarian policies, as well as the historical development of these theories and their adaptation to specific historical contexts.

 

Keywords: Effectiveness; Fundamental rights; Legal certainty; Rule of Law.

 

 

1. INTRODUÇÃO

 

A discussão em torno da eficácia dos direitos fundamentais, nos remete inicialmente ao contexto histórico liberal (final do século XVIII), com as conquistas galgadas pelas revoluções francesa (1789) e americana (1776). Momento este, caracterizado pelos direitos de primeira dimensão/geração, quais sejam, as liberdades civis ou negativas, pois que exigiam a ausência de impedimentos ou abstenção por parte do Estado. Esses direitos surgiram como defesa do cidadão perante os desmandos e a força do Estado, contra a emanação do poder 7Yde comando, atingindo os governados (uma eficácia de cima para baixo), dessa força verticalizada (Estado - cidadão) surgiu a chamada teoria da eficácia vertical.


A teoria da eficácia vertical refere-se à vinculação dos poderes públicos a essa categoria de direitos, a ideia inicialmente fomentada por essa teoria é a de estabelecer obrigações negativas (não-fazer) ao Estado. Levando-se em consideração a concepção liberal, pioneira e idealizadora dos direitos fundamentais, percebe-se que não há divergências quanto à incidência dos direitos fundamentais nas relações do cidadão com os poderes públicos. Em torno do que se entende por poderes públicos, elencamos os deveres positivos e negativos de cada poder do Estado Democrático de Direito.


Significativas alterações, senão desenvolvimento, nos espaços social, econômico e político das sociedades contemporâneas, resultaram no inconformismo da sociedade pelo fato de os direitos fundamentais vincularem tão somente o Estado. Percebeu-se que as garantias de liberdade já não eram suficientes para garantir a harmonização social, mormente com o desenvolvimento econômico, quando houve a proliferação exacerbada dos conflitos de interesse.


Em um viés comunitarista, entende-se que liberdade individual apesar de possuir um discurso de desenvolvimento, fomenta a desigualdade social, o abismo econômico, os antagonismos das classes e o agravamento dos níveis de opressão. Não podemos olvidar que nas relações privadas existem dois particulares e para haver o pregresso econômico de um, em muito, ocorre o retrocesso da outra parte.


Observando que os direitos fundamentais não são oponíveis exclusivamente ao Estado, mas aplicam-se ainda aos particulares, exigindo-lhes respeito e atenção. “Sua eficácia, portanto, não se restringe aos domínios constitucionais, valendo, externamente, para os demais subsistemas jurídicos, por meio de relações intersubjetivas verticais (sujeitos privados e Estado) e horizontais (entre sujeitos privados) (SAMPAIO, 2013, p. 654).


Como bem diz Canotilho, “as relações privadas não são isentas de Constituição nem o direito privado é objeto extraconstitucional” (CANOTILHO apud SAMPAIO, 2013, p. 655).


Superado o debate acerca da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, passamos para a questão de saber como ou quanto uma norma de direito fundamental pode ser aplicada no curso das relações jusprivatistas, para isso, abordaremos as principais teorias dos efeitos/aplicabilidade da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, quais sejam, teoria dos efeitos imediatos, ou aplicabilidade direta e teoria dos efeitos mediatos ou de aplicabilidade indireta.


Não se pode esquecer, contudo, da chamada teoria da eficácia diagonal dos direitos fundamentais, aplicada às relações entre particulares marcadas pela vulnerabilidade, subordinação e desigualdade de poder, típicas das relações de consumo e laborais. Para os defensores dessa corrente, ela se diferencia da eficácia horizontal, uma vez que essa se caracteriza pela igualdade entre os entes privados envolvidos no conflito, enquanto que, para haver a eficácia diagonal, deve existir desproporcionalidade e vulnerabilidade de uma das partes. Aqui surge a seguinte questão: a eficácia diagonal seria uma teoria independente ou apenas uma ramificação da teoria da eficácia horizontal?

 

2. VINCULAÇÃO DO ESTADO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO FORMA DE PROTEÇÃO DO CIDADÃO CONTRA OS DESMANDOS ESTATAIS – TEORIA DA EFICÁCIA VERTICAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

 

Sabe-se que os direitos fundamentais de primeira geração/dimensão foram concebidos como poderes conferidos aos indivíduos como forma de proteção contra a opressão/ingerência do Estado. Nesse sentido surgiu a chamada teoria da eficácia vertical dos direitos fundamentais, em referência à relação vertical (poder e sujeição) havida entre Estado e indivíduo, considerando a “verticalização” da irradiação centrífuga dos direitos humanos/fundamentais, com a emanação do poder de comando, atingindo os comandados.


Poder e liberdade eram duas forças que competiam. O problema da independência entre Estado e indivíduo é que para o primeiro ser considerado como tal, necessário se faz a presença da sociedade e para que possa existir independência/liberdade para o indivíduo são necessárias garantias estatais, mutatis mutandi, estaria o indivíduo protegido do “Leviatã”, porém indefeso contra o próprio homem, restando como meios de resolução a autocomposição ou a autotutela.


Com a construção do Estado jurídico, cuidavam os pensadores do direito natural, principalmente os de sua variante racionalista, haver encontrado formulação teórica capaz de salvar, em parte, a liberdade ilimitada de que o homem desfrutava na sociedade pré-estatal, ou dar a essa liberdade função preponderante, fazendo do Estado o acanhado servo do indivíduo (BONAVIDES, 2001, p.40).

 

A expectativa havida no contexto histórico liberal da época (pós-revoluções francesa e americana) era a de obrigações negativas por parte do Estado, exigia-se um não agir, uma abstenção estatal em face dos cidadãos e respeito à autonomia individual. Com o advento das demais gerações dos direitos fundamentais surgiu a concepção de competências positivas do Estado, com tarefas de “organização e procedimento”, a título de exemplo: elaboração de leis civis e penais, exercício do poder de polícia, prestação jurisdicional, fomento do ensino público, entre outros. É de bom alvitre ressaltarmos que as obrigações estatais, sejam elas negativas ou positivas, devem observar os parâmetros da proporcionalidade e da razoabilidade, pois “o excesso ou a deficiência de intervenção em qualquer de suas dimensões é causa de inconstitucionalidade” (PULIDO apud SAMPAIO, 2013, p. 648).


Ressalte-se que a vinculação estatal aos direitos fundamentais se dá em relação a todos os poderes públicos, visando, nesse sentido, vetar o surgimento (manipulação) de novas fórmulas menos convencionais ou formais de “exercício dos poderes públicos no contemporâneo Estado Democrático, seja possível escapar à obrigação de respeito aos direitos fundamentais, e, por conseguinte, estabelecerem limitações indevidas à esfera de liberdade do cidadão” (BASTIDA FREIJEDO apud AMARAL, 2014, p. 67).


Devem ainda ser considerados atos dos poderes públicos, todos aqueles emanados por organismos autônomos e entidades empresariais do Estado, pelos concessionários de serviço público, pelas corporações profissionais de direito público, enfim, todos os atos decorrentes de quaisquer espécies de delegação, outorga ou concessão da função pública. Estas competências (positivas ou negativas) se insurgem na seara de todos os poderes estatais, entretanto com extensões diversas em relação a cada um.

 

2.1. VINCULAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

 

O dever básico do poder legislativo é o de promover os direitos fundamentais, apresentando, para isto, obrigações negativas e positivas. Quanto às obrigações de não fazer do Poder Legislativo, temos que se operar como uma ordem que veda a produção de normas atentatórias aos direitos fundamentais.


A Constituição do Brasil, por exemplo, prevê que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Art. 5º, XXXV); “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (Art. 5º, XXXVI); “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (Art. 5º XL) (SAMPAIO, 2013, p. 648).

 

Em se tratando das obrigações de caráter positivo do Poder Legislativo, trata-se da exigência em conceber instrumentos jurídicos de natureza formal ou material para efetivação e posterior atualização dos direitos fundamentais. Isto é, trata-se da exigência prioritária no desenvolvimento de leis que promovam a criação do catálogo de direitos fundamentais, com suas delimitações e, posteriormente, com a elaboração de suas atualizações, quando necessárias.


Mais precisamente, o dever de legislar decorre de normas jusfundamentais que necessitam de leis para conferir-lhes poder e equilíbrio no trato para com o cidadão.


A Constituição Brasileira se vale de diferentes fórmulas lexicais, por exemplo: “são assegurados, nos termos da lei” (Art. 5º, XXVIII); “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário...” (Art. 5º, XXIX); “a lei regulará a individualização da pena e adotará...” (Art. 5º, XLVI). Há ainda as normas que requerem mais: uma dimanação prática e material que depende da afetação de recursos, por meio de leis orçamentárias, por exemplo, e instituição de quadros orgânicos, como a criação de instituições, cargos, funções e procedimento de promoção dos direitos. Um exemplo típico é a criação de tribunais e dos meios de processo que possibilitem o exercício da garantia de acesso ao judiciário (Art. 5º, XXXV). O Legislador neste caso apurará as condições de possibilidades materiais, como a disponibilidade de recursos orçamentários e financeiros, em vista de outras necessidades, para dar seguimento à sua tarefa concretizante. Trata-se de uma situação intermediária entre o dever fraco e o dever forte [...] (SAMPAIO, 2013, p. 649).

 

Há de se ressaltar que a “liberdade de conformação legislativa” tão invocada por este poder, não se trata de liberdade legislar como bem entender, refere-se ao dever de conformar as normas com as disposições jusfundamentais.

 

2.2. VINCULAÇÃO DO PODER EXECUTIVO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

 

Apesar de o contexto histórico indicar que o principal fomentador e maior agressor dos direitos individuais fundamentais tenha sido o Poder Executivo, é preciso reconhecer que, atualmente, ele é responsável pela execução, “proteção” e promoção das políticas relacionadas aos direitos fundamentais. Acerca das obrigações positivas do Poder Executivo, José Adércio Leite Sampaio (2013, p. 651) nos ensina, com o primor que lhe é peculiar:


Executa-a, quando respeita os direitos, fazendo ou deixando de fazer algo, mas também quando faz respeitar. Executa-a ainda, quando promove medidas e prestações que se destinam a efetivar os direitos. Fomenta-a por meio de programas e ações que visam a uma pedagogia da cultura e práxis dos direitos fundamentais.

 

Ainda assim, não podemos olvidar que o Estado ainda é um dos grandes responsáveis pela opressão e desrespeito aos direitos fundamentais, decorrentes de sua ingerência administrativa.


Em contrapartida às obrigações positivas do Poder Executivo, temos que o dever de abstenção estatal fora consolidado no direito (poder) de liberdade individual, ou melhor, no dever de não intervenção do estado na autonomia privada. Com isso o Estado não pode(ria) intervir na livre-iniciativa, na liberdade religiosa, no direito à propriedade, à liberdade de expressão, à participação política e religiosa, à inviolabilidade de domicílio, à liberdade de reunião, entre outros, tudo isso, logicamente em um Estado Democrático de Direito.

 

2.3. VINCULAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

 

As ingerências e disfuncionalidades dos Poderes Legislativo e Executivo, sejam na elaboração ou atualização, sejam na execução ou promoção dos direitos fundamentais, levaram a uma percepção de que o Poder Judiciário se encontra em uma justaposição em relação aos demais poderes, como protetor das normas jusfundamentais.


Entretanto, esta posição do Poder judiciário, traz consigo complexa responsabilidade, a) no sentido de apresentar o progresso dos direitos fundamentais, com a sua atualização através da aplicação de inovações elaboradas pelo do Legislativo, ou com decisões hodiernas, baseadas no desenvolvimento das gerações e nas mudanças de costumes; b) retificar determinações legislativas, reconhecendo a inconstitucionalidade das normas, ou aplicar uma interpretação razoável às normas anômalas.


Em razão da majoração da responsabilidade do Poder Judiciário, é a vinculação dos juízes formal e materialmente aos direitos fundamentais, forma de garantir a segurança jurídica necessária ao Estado Democrático de Direito. Diz-se formal, porque deve haver o respeito às formas, regras, competências e atribuições alheias, observando sempre o devido processo constitucional. Quanto à matéria, trata-se do respeito à realização da justiça, ponderando a aplicação e respeitando os direitos fundamentais, não podendo o órgão jurisdicional limitar ou exceder os limites de tais direitos.

 

3. EFICÁCIA HORIZONTAL OU VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES A DIREITOS FUNDAMENTAIS

 

O desenvolvimento político, econômico e social do Estado de Direito trouxe consigo uma instabilidade, um inconformismo geral, vez que a sociedade percebeu que a proteção dos direitos fundamentais apenas contra as opressões e ingerências do Estado já não era suficiente para “garantir a felicidade dos indivíduos e a prosperidade das nações” (ANDRADE in SARLET et al, 2010, p.243). As relações interprivadas também necessitavam de uma proteção jusfundamental, a autonomia privada, antes absoluta, agora fora flexibilizada em favor do interesse público. Reconhecendo o perigo presente no âmbito privado, Gregorio Peces-Barba Martínez sustenta que:


O Poder político não é o único capaz de causar danos às pessoas nos âmbitos protegidos pelos direitos. Existem poderes sociais, e inclusive outros indivíduos capazes de produzir malefícios e danos dos quais devemos proteger os direitos fundamentais. A vida, a integridade física, as condições de trabalho, a liberdade de ensino, o direito de reunião e de manifestação à liberdade pessoal, a inviolabilidade do domicílio e das comunicações, não são direitos que devam temer principalmente o Poder político em uma sociedade democrática (PECES-BARBA MARTÍNEZ apud AMARAL, 2014, p. 73).

 

A regra formal de liberdade e não intervenção constitucional (fundamental) nas relações entre entes privados apenas mitigava o desenvolvimento individual e consequentemente coletivo, bem como aumentava o abismo social (econômico) e agravava os níveis de opressão.


A sociedade deixou de compreender o porquê da proteção dos direitos fundamentais apenas contra o Estado, percebendo que “à medida que se verifica a profunda diversificação e imbricação entre os interesses das pessoas e se multiplica a actividade dos partidos e dos grupos de interesse” cada vez mais “ as entidades privadas passam a exercer tarefas de interesse coletivo ou determinam em termos fundamentais os comportamentos de indivíduos em diversas áreas sociais” (ANDRADE in SARLET et al, 2010, p.243), olvidando a diferença entre as pessoas públicas e as pessoas privadas.


A grande diferença existente entre os poderes públicos e privado, reside no fato de que estes, em regra, possuem uma vinculação negativa aos direitos fundamentais, ou melhor, detêm um dever de respeito em relação aos direitos alheios.

Como mecanismos para efetivação da constitucionalização ou “humanização” dos institutos civis (materiais ou processuais), temos a eficácia horizontal/diagonal dos direitos fundamentais.


A ideia de que todas as pessoas, sejam elas públicas ou privadas, devem respeitar os direitos fundamentais, nasceu em meados do século XX (1950), após a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha, mais precisamente com o Caso Lüth,[1] que apresentou ao pensamento alemão converter o dever subjetivo, geral e reflexo de (obediência às normas fundamentais) em dever objetivo, estrito senso, erga omnes (SAMPAIO, 2013, p. 655).


Há quem diga, contudo, que anteriormente à sentença do caso Lüth, o Tribunal Federal e a Magistratura Federal do Trabalho (Bundesarbeitsgericht) já estavam debatendo sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Um dos defensores dessa opinião é Maria Venegas Grau, que nos informa ainda que o Parlamento alemão (1949), não demonstrava interesse em desenvolver/atualizar alguns pontos constitucionais, estimulando os operadores do direito a remeterem aos Juízes e Tribunais para remediar as situações, “a fim de evitar que as normas constitucionais ficassem sem os efeitos desejados” (VENEGAS GRAU apud AMARAL, 2014, p.72). Nos Estados Unidos da América, existiu o caso Kraemer[2] (1948), que também debateu a aplicação dos direitos fundamentais em relações jusprivatistas.


Após o surgimento e reconhecimento da teoria de vinculação dos particulares aos direitos, o grande problema foi:


[...] saber como se daria essa incidência. Haveria necessidade de leis que caracterizassem as normas jusfundamentais ou ocorreria mesmo sem elas? A resposta levou ao desenvolvimento das teorias da eficácia imediata ou direta (unmittelbare, direkte Drittwirkung) e da eficácia da eficácia mediata ou indireta (mittelbare, indirekte Drittwirkung) entremeadas por versões que ora se parecem com a primeira (doutrina da state action ou da equiparação com o Estado e a do dever de prestação estatal), ora com a segunda (doutrina da responsabilização do Estado) (ALEXY apud SAMPAIO, 2013, p. 655).

 

A título de informação temos que no âmbito do direito anglo-saxão, em adição ao termo horizontal effect, criou-se ainda a nomenclatura Privatisation of human rights.


Os estudos acerca da vinculação das relações entre particulares aos direitos fundamentais no Brasil teve início em 1976, Clóvis Veríssimo do Couto e Silva[3], que “falava da necessidade de as leis limitarem o poder de regular cláusulas contratuais em face da necessidade de se preservar certas garantias. Nessa ótica, qualquer contrato que abolisse direito inalienáveis (ex: liberdade individual, de crença, de consciência etc.) seria nulo” (DUQUE, 2013, p. 43).


Outrossim, com a promulgação da Constituição da República do Brasil (1988), a corrente doutrinária majoritária, sobretudo no final da década de noventa, defende a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais nas relações interprivadas, com efeitos diretos e imediatos. Essa corrente doutrinária encontra-se fundamentada, basicamente, no fato que a partir de uma aplicação direta/imediata dos direitos fundamentais aos particulares, existe uma fundamentação direta desses direitos no tráfego jurídico privado, baseados no princípio da dignidade da pessoa humana e da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais, gerando a tão comentada “constitucionalização do direito privado”.


Indubitavelmente, questões provenientes da aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas não são exclusivas de uma ou outra nação, trata-se de problemas inerentes a países democráticos, onde existe o respeito aos direitos fundamentais, por serem estes direitos hierarquicamente superiores aos demais. Entretanto, as constituições da maioria dos países democráticos, mesmo as modernas, inclusive a brasileira, silenciam na positivação da eficácia de direitos fundamentais em relações privadas. Afinal, seria mais acertado as constituições apresentarem, de forma expressa, as diretrizes da eficácia dos direitos fundamentais (mostrando seu posicionamento contra ou a favor)?


A Constituição brasileira limita-se a informar que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (Art. 5º, § 1º), não manifestando-se em relação à eficácia das normas de direito fundamental em relações privadas. Como exemplos de constituições onde encontram-se arraigadas as previsões de eficácia horizontal dos direitos fundamentais temos a Constituição Portuguesa[4] de 1976 e a Constituição Suíça[5] de 1999, porém, ambas se abstêm em profetizar os efeitos (diretos ou indiretos) da eficácia horizontal.


Com efeito, podemos trazer o respeitado posicionamento de Marcelo Schenk Duque em relação à positivação da eficácia dos direitos fundamentais na própria Constituição:


Por se tratar de uma construção dogmática da mais elevada complexidade, que requer um esforço argumentativo permanente, entende-se que a modalidade de eficácia dos direitos fundamentais nas relações privada deve ficar em aberto pela constituição, cabendo a cada ordenamento jurídico encontrar as soluções que se mostrem mais adequadas à sua realidade, levando em conta não apenas o arranjo constitucional como também a própria estrutura de direito privado (2013, p. 56).

 

Malgrado esse posicionamento, por entender que uma previsão constitucional traria mais simplicidade e compreensibilidade na aplicabilidade dos direitos fundamentais para resolução dos conflitos de interesse privados, dispensando complexos e intermináveis debates dogmáticos (esses debates seriam competência do poder constituinte).


Sabendo que toda norma constitucional é dotada de eficácia jurídica e aplicabilidade, mesmo as de cunho programático, reservamos os seguintes subtópicos para analisarmos a harmonização na aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas e a produção dos seus efeitos. Diante da complexidade havida na presente discussão, limitamo-nos à análise das duas principais correntes, quais sejam, a de efeitos/aplicabilidade direta ou imediata e a de aplicabilidade indireta ou mediata.


É de bom alvitre ressaltarmos que existem outras correntes acerca dos efeitos (aplicabilidade) da vinculação de particulares aos direitos fundamentais, a de negação da produção dos efeitos ou state action doutrine, teoria dos deveres de produção do Estado, teoria da convergência estatista, entre outras.

 

3.1 A APLICABILIDADE DIRETA E IMEDIATA DAS NORMAS JUSFUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS

 

A origem da teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares se deu na Alemanha, em 1954, denominada de Unmittelbare Drittwirkung der Grundrechte, fora concebida em uma obra de Hans Carl Nipperdey, intitulada “A Dignidade Humana” (DUQUE, 2013, p. 102).


Conforme citado alhures, a doutrina majoritária brasileira entende pela aplicação ou vinculação direta dos direitos fundamentais nos conflitos particulares, embora não seja este o entendimento majoritário nos países que reconhecem a vinculação dos particulares a direitos fundamentais, inclusive na Alemanha.


O modelo de efeitos diretos estabelece que os direitos fundamentais irradiam de forma direta e imediata nas relações entre particulares, de modo semelhante aos efeitos das relações entre Estado e cidadão. Ou seja, defende-se aqui uma aplicação que independe de mediação das legislações privadas, em razão da supremacia das normas constitucionais, que devem ser aplicadas a todos os sujeitos, bem como a todas as relações jurídicas, acreditamos que apenas com esse raciocínio, poder-se-ia falar em unidade do ordenamento jurídico (propriamente dita).


A doutrina majoritária brasileira acredita que aplicação direta dos direitos fundamentais promove efetividade dos ditames constitucionais, reforça a confiança dos cidadãos no texto constitucional, protege as pessoas, a dignidade humana e traz segurança jurídica ao Estado de Direito.


Entre os pilares que fundamentam a superveniência de tal modelo, podemos resumir: a) o supramencionado Art. 5º, §1º da nossa Lex Suprema dispõe: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”; b) o fundamento da ordem jurídica geral e, portanto do direito privado, é a dignidade humana; c) os direitos fundamentais, como expressão de valores supremos, devem ser efetivamente assegurados na vida social; d) considerar a mutabilidade e evolução são inerentes aos direitos fundamentais, que, por sua vez, relacionam-se com o desenvolvimento das relações sociais; e) os direitos fundamentais têm como características a universalidade e multidirecionalidade, ou seja, devem ser válidos contra todos; f) há quem defenda ainda que a lógica de que aquilo que não é permitido ao Estado, também não o é no âmbito privado.

Esses fundamentos resumem-se no seguinte argumento: Considerar que existem grupos, pessoas ou poderes, com tamanha força, seja ela econômica, jurídica ou política, que se encontram acima, até mesmo do Estado e pode essa força ou poder incidir na liberdade individual dos cidadãos. Diante disso, não pode um ordenamento jurídico basear-se numa obsoleta interpretação de que o Estado é o único agressor/ameaça de direitos fundamentais, para tanto, necessário se faz a efetividade dos direitos fundamentais aos particulares.


Embora sejam contundentes e razoáveis os argumentos para a validação da eficácia direta, também é nosso dever apresentar as críticas de maior relevância. Acredita-se que a principal crítica, volta-se para a violação da autonomia privada, com a mitigação ou destruição do direito contratual. Nesse sentido dispões Claus-Wilhelm Canaris que a eficácia direta “implicaria na destruição tanto do direito contratual quanto também do direito da responsabilidade extracontratual, pois ambos seriam em larga escala substituídos pelo direito constitucional”, e continua, “isso contradiz a autonomia do direito privado, desenvolvida organicamente no decorrer de muitos séculos, contrariando, também no que diz com o direito alemão, a função dos direitos fundamentais que em princípio” vinculam, exclusivamente o Estado (CANARIS apud BAGGIO e MARQUES, 2013, p. 254).


Para Marcelo Duque, o reconhecimento da eficácia direta, pode ser afastada pela seguinte linha argumentativa: de que esta teoria vai de encontro ao “conjunto de tradição histórica, natureza e função dos direitos fundamentais, impossibilidade de recondução à cláusula de aplicabilidade imediata e incompatibilidade com o princípio da autonomia privada” (DUQUE, 2013, p. 118). Quanto à história, natureza e função dos direitos fundamentais, defende-se que sempre foram voltados para proteção dos cidadãos contra as ingerências estatais; a impossibilidade de recondução à cláusula de aplicabilidade imediata trata-se de uma extensa interpretação e discussão acerca das disposições do Art. 5º, §1º da Constituição brasileira, defende-se aqui que esse dispositivo, volta-se apenas aos poderes públicos, excluindo as pessoas privadas.

 

3.2. A APLICABILIDADE INDIRETA E MEDIATA DAS NORMAS JUSFUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS

 

A teoria da eficácia horizontal de efeitos indiretos (Mittelbare Drittwirkung), também foi desenvolvida em meados do século XX, alguns juristas abordaram essa teoria, defendendo: a) que a Constituição como norma suprema, é a fonte mais adequada para preenchimento dos conceitos e das cláusulas gerais do direito civil (Herbert Krüger - 1949); b) a influência da cláusula geral de bons costumes para aferição da legalidade/legitimidade dos contratos privados (Walter Jellinek - 1950); c) o princípio da igualdade não poderia ser aplicado nos contratos de trabalho, à medida que os direitos fundamentais vinculavam apenas o Estado (Alfred Hueck – 1951); d) a impossibilidade de contratos privados excluírem a possibilidade de livre circulação de uma das partes contratantes (Günter Dürig - 1954).


Os defensores dessa corrente, encabeçada pelos ensinamentos de Dürig, entendem que “a aplicação dos direitos fundamentais a relações entre particulares se dá por meio de interpretação e, mais exatamente, da integração das cláusulas gerais e conceitos indeterminados que se encontram nas regras de direito privado” (DRÜRIG apud SAMPAIO, 2013, p 657). Assim, não seriam os direitos fundamentais que se aplicariam diretamente nas relações privadas, mas a sua essência, o seu conteúdo subjetivo, ou seja, o conteúdo dos direitos fundamentais irradiaria por todo o ordenamento jurídico, influenciando o legislador, a fim de regulamentar as relações privadas.


Nesse sentido, o legislador desempenharia a função capital de conciliar e antever os direitos fundamentais na autonomia privada, compete ainda ao Poder Legislativo definir o equilíbrio entre os direitos e valores conflitantes, o conteúdo e condições para exercício dos direitos, bem como a solução dos conflitos de interesse entre entes privados. Ao Poder Judiciário restaria apenas a tarefa subsidiária de aplicar as normas, funcionando exclusivamente como a “boca da lei”.


A teoria da eficácia indireta, fundamenta-se basicamente em quatro argumentos, que também funcionam como críticas à teoria contraposta (eficácia direta), seriam eles: a) segurança jurídica; b) racionalidade sistêmica; c) legitimidade democrática; d) autonomia da vontade. Em síntese, fala-se em segurança jurídica visto que não possibilitaria aos julgadores interpretações amplas (instrumentos de ponderação), com decisões ad hoc, não universalizáveis; o império dos juízes e suas ponderações tomariam o lugar dos representantes eleitos democraticamente pelo povo; a intromissão do estado nas relações particulares afetaria a liberdade individual dos particulares.


Percebe-se que a base fundamental da eficácia indireta é exigir uma mediação legislativa, já que cabe ao legislador ordinário concretizar indiretamente os conteúdos jurídicos dos direitos fundamentais para as relações privadas.


Profundas críticas, porém, foram erigidas contra o modelo de efeitos indiretos dos direitos fundamentais nas relações privadas, podemos citar a crítica contundente de Juan María Bilbao Ubillos: “é no mínimo discutível o argumento segundo o qual os direitos fundamentais aplicar-se-iam às relações interprivadas desde que não haja prévia regulamentação destes direitos pelo legislador privado, que diante da omissão legislativa seja inviabilizado o exercício de direito fundamental” (BILBAO UBILLOS apud BAGGIO e MARQUES, 2013, p. 249).


Nesse sentido, os críticos reconhecem e defendem a impossibilidade de o legislador ordinário antever (legislar) todos os possíveis conflitos e determinar as soluções, é no mínimo discutível não reconhecer que a natureza dos direitos fundamentais são os direitos humanos, ou seja, direitos que estão para o homem apenas por pertencer a esta espécie.

 

4. SERIA A TEORIA DA EFICÁCIA DIAGONAL UMA NOVA FORMA DE APLICABILIDADE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS, OU UMA RAMIFICAÇÃO DA EFICÁCIA HORIZONTAL?

 

Superado o debate acerca dos efeitos, aplicabilidade e vinculação dos direitos fundamentais nas relações particulares, atualmente seria difícil defender a hipótese de não aplicabilidade dos direitos fundamentais em relações jusprivatistas. Observa-se que tanto o papel das novas constituições como a própria análise das realidades econômica, política e jurídica corroboram nesse sentido. O chileno Sergio Gamonal Contreras, precursor ao tratar da novel teoria da eficácia diagonal, fundamenta seus entendimentos da seguinte forma:


Ademais as instituições jurídicas evoluíram com o tempo e não seria razoável permanecer ligado a uma noção histórica ou às ideias do século XVIII e XIX, nas quais, por exemplo, os negros e as mulheres eram excluídos do âmbito de cobertura dos direitos fundamentais. Ninguém poderia argumentar que a extensão do direito de voto às mulheres no século XX violentou a “verdadeira e histórica” noção de direitos humanos. Tampouco é admissível essa argumentação contra a horizontalidade dos direitos. Se formos consequentes como essa “suposta origem histórica” dos direitos fundamentais apenas contra os poderes públicos que, afinal, concentram o poder na sociedade, teríamos de aceitar que desde o início do século XX muitas instâncias de poder são privadas como, por exemplo, as empresas transnacionais, algumas das quais, com maiores recursos econômicos do que países em desenvolvimento. Em consequência, se os direitos fundamentais nascem para limitar a concentração de poder (Estado), para sermos coerente com essa ideia também deveríamos aceitar que, na atualidade, em existindo concentração de poder privado, também deveriam atuar os direitos fundamentais como limites desse poder particular. Afinal atuam como barreiras frente à qualquer tipo de concentração de poder, independentemente de sua origem ou denominação: estatal ou privada (CONTRERAS, 2011, p. 23).

 

Assim, observando a evolução histórica, cultural e o desequilíbrio gerado entre os entes privados, sobre o prisma das relações entre particulares, ante a força do fornecedor/empregador face ao consumidor/trabalhador, reconhecendo que, da aplicabilidade da teoria da eficácia horizontal, em relações, nas quais existam vulnerabilidade de uma das partes, não haverá equilíbrio ou igualdade material entre as partes para uma decisão justa. “Consequentemente, esse conteúdo potestativo tão intenso desequilibra a relação empregador/trabalhador, retirando-a de uma eficácia horizontal e a colocando em um plano de eficácia diagonal dos direitos fundamentais entre particulares.” (CONTRERAS, 2011, p.31).


Isto é, a diferença entre a presente teoria e a teoria da eficácia horizontal seria no sentido de que esta aplica-se em relações que estejam marcadas pela igualdade, proporcionalidade dos entes privados envolvidos no litígio, enquanto aquela resta caracterizada pela hipossuficiência, hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade em um dos polos litigantes, como ocorre com certa frequência nas relações laborais e consumeristas. 


A presente teoria possui o escopo de ampliar a promoção da defesa dos hipossuficientes (consumidor/trabalhador), positivada pela Constituição como direito fundamental e princípio da ordem econômica nacional, a fim de que o Estado, agindo positivamente, com uma aplicação proporcional do direito fundamental sobre o consumidor/empregado, promova a tutela dos seus direitos, com uma prestação protetiva de todos os seus poderes. Haja vista a importância desta proteção consumerista para o sistema constitucional brasileiro, que sendo um direito e garantia individual, encontra-se positivado como cláusula pétrea na Constituição da República Federativa do Brasil em seu art. 60, §4º, IV. “A essência e a destinação do princípio da proporcionalidade é a preservação dos direitos fundamentais” (FILHO, 2006, p. 103).


Apesar do reconhecimento da vinculação dos direitos fundamentais em relações privadas, as críticas que pairam sobre essa teoria (diagonal) são as mesmas que acometem a teoria da eficácia horizontal. Percebemos, porém, que se concentram mais no alcance da eficácia, do que em negar a possibilidade da aplicação dos direitos fundamentais. Sabemos que as críticas enfrentadas por essas teorias, de vinculação dos direitos fundamentais em relações particulares, estão baseadas na tese liberal, na segurança jurídica e na autonomia privada, críticas estas, já abordadas em tempo oportuno.


Contudo, pelo fato de os contratos privados serem expressão da autonomia individual, a mensuração do seu conteúdo com base nos direitos fundamentais sempre foi – e sempre será – um assunto consideravelmente problemático. Isso porque uma ordem jurídica que decide pelo reconhecimento do direito ao livre desenvolvimento da personalidade dos seus cidadãos deve proteger a liberdade contratual e a autonomia privada. Com isso, ela deve conceder aos particulares a liberdade para a autorregulação dos seus contratos. Fundamento, para tanto, é que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade contém, necessariamente, o direito à liberdade contratual. Por força dessa estreita conexão, mostra-se como pura questão de técnica constitucional, se o catálogo de direitos fundamentais, ao lado dos direitos ligados ao desenvolvimento a personalidade do cidadão, deverá conter, adicionalmente, um direito expresso à garantia da liberdade contratual. Isso porque a garantia da liberdade contratual resulta, em última análise, da garantia ao livre desenvolvimento da personalidade (DUQUE, 2014, p. 153).

Assim, a liberdade contratual não deve ser ilimitada, visto que deve obedecer aos valores impostos pela Constituição, observando ainda que a Constituição não deve ser compreendida como uma versão comprimida do direito civil, penal ou administrativo, ou seja, as normas infraconstitucionais, reguladoras das relações interprivatos, devem observar sempre os ditames constitucionais.


Conforme entendimento da doutrina dominante, não é à vontade, mas a lei, que outorga força vinculante/obrigatória aos pactos e esta força vinculante é/torna-se, algumas vezes, consideravelmente excessiva, necessitando o ente vulnerável de proteção estatal para reequilíbrio da relação com uma incidência proporcional dos direitos fundamentais. Nas relações laborais:


Na doutrina chilena, Jorge López fala do nítido declínio do dogma da autonomia da vontade, assinalando que “salta aos olhos que a identidade do contratual com o justo é uma falácia. Apenas em circunstâncias de real igualdade entre os contratantes poderia tal ideia ter alguma verossimilhança”, acrescentando que “com muita frequência o contrato tem sido instrumento para estabelecer cláusulas leoninas ou abusivas, não sendo necessário recorrer ao contrato de trabalho da época da Revolução Industrial como por exemplo...” Também estabelece que “é igualmente impreciso que a liberdade contratual produza sempre resultados econômicos socialmente úteis”. Sobre a deterioração do princípio da liberdade contratual esse autor indica que “os textos legais que estabelecem a liberdade contratual cuidam de advertir que esta não é absoluta, mas que tem como limites a lei, a ordem pública e os bons costumes”, manifestando que “o legislador, cada vez com maior frequência, fixa imperativamente as cláusulas mais relevantes de certos contratos, que não mais são entregues à livre negociação das partes” (LOPÉZ SANTA MARÍA, 1998, p. 239, apud CONTRERAS, 2011, p. 26).

 

Porquanto, nas relações de consumo nos deparamos sempre com os temerários contratos de adesão, “aquele cujas cláusulas são preenchidas unilateralmente pelo parceiro contratual economicamente mais forte (fornecedor), ne varietur, isto é, sem que o outro parceiro (consumidor) possa discutir ou modificar substancialmente o conteúdo do contrato escrito” (MARQUES, 2014, p. 78). Como poderíamos falar de autonomia das vontades, da liberdade contratual, da pacta sunt servanda, se em muitos casos, não são concedidos ao consumidor a possibilidade de discutir cláusulas contratuais, sabemos que no Brasil muitos desses contratos são celebrados com prestadoras de serviços essenciais (concessionárias de água, esgoto e energia). Em grande parte das relações, sequer o consumidor tem conhecimento do conteúdo do contrato, considera-se que o consumidor é uma “vítima da contratação”.


Efetivamente, no Brasil de hoje, a proteção do consumidor é um valor constitucionalmente fundamental (Wertsystem), é um direito fundamental e é um princípio da ordem econômica da Constituição Federal (art.170, V), princípio limitador da autonomia da vontade dos fortes em relação aos fracos ou vulneráveis (debilis), construindo um novo direito privado mais consciente de sua função social (expressão de Gierke) (BENJAMIN et al, 2008, p.30).

A eficácia da proteção destinada aos consumidores e trabalhadores, como forma de dever estatal, ultrapassa as diretrizes traçadas na Constituição como os objetivos estatais ou ainda os princípios da ordem econômica, uma vez que os deveres de proteção estatais (consumidor e trabalhador) advêm dos direitos fundamentais e não de “meros” objetivos ou tarefas do Estado. Nesse sentido:


Assim, devidamente comprovadas que as inclusões da proteção do consumidor (Art. 5º, XXXII da CRFB/1988) e do trabalhador (Art. 6º e Seguintes da CRFB/1988) deram-se na forma de direitos fundamentais sobre a perspectiva de um dever de proteção do Estado. Então, os críticos da vinculação dos direitos fundamentais nas relações particulares afirmam que a Constituição dá o comando e o Estado cumpre. Em relação aos consumidores, por exemplo, foi ordenado ao Poder Legislativo promover a defesa dos consumidores, este por sua vez, observando os ditames constitucionais elaborou o Código de Defesa do Consumidor e algumas disposições inseridas no Código Civil.


Em contrapartida, os defensores das teorias vinculativas dos direitos fundamentais às relações privadas, afirmam que é impossível o microssistema do consumidor estabelecer regras e antever soluções para resolução de toda e qualquer controvérsia. Mais embaraçoso ainda é o microssistema consumerista promover a resolução de conflitos de direitos fundamentais (considerados princípios constitucionais) que necessitam de interpretações complexas, fazendo-se necessário, nos casos envolvendo vulneráveis, aplicação proporcional de direitos fundamentais mediante um labiríntico juízo de ponderação.


Eis que surge da contestação supramencionada, a seguinte questão: seria a teoria da eficácia diagonal uma nova forma de aplicabilidade de direitos fundamentais, ou um enraizamento/aprimoramento da eficácia horizontal?


Os defensores da teoria da eficácia diagonal, conforme citado alhures, defendem que esta teoria se aplica em relações maculadas pela hipossuficiência de uma das partes, geradas pelo poder que detém o empregador ou o fornecedor sobre o empregado ou consumidor. Não apenas o poder econômico, mas também jurídico. Enquanto que, a eficácia horizontal trata de relação entre particulares em nível de igualdade, seria a equidade a marca da eficácia horizontal.


Entretanto, como já explanado, sabemos que uma das hipóteses históricas para aceitação da eficácia horizontal foi o desequilíbrio, principalmente econômico provocado pelas revoluções. Ou seja, desde a sua concepção, a eficácia horizontal já admitia e fundamentava a sua validade no desequilíbrio das relações jusprivatistas, nesse sentido também pode caminhar a teoria da eficácia diagonal.

 

4. CONCLUSÃO

 

Nessa breve trajetória das teorias de eficácia dos direitos fundamentais, percebemos que a teoria da eficácia vertical, em contraposição às teorias de vinculação aos particulares, não nos apresenta tamanha divergência.

Entretanto, conforme lição de Wilson Steinmertz, conclui-se “que essa ideia de vinculação de direitos fundamentais nas relações entre particulares está longe de lograr a força de uma ‘evidência constitucional’” (STEINMERTZ apud COSTA, 2010, p. 18).


Nas teorias de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais (eficácia horizontal e diagonal) verificamos inúmeras questões complexas, tanto no que se refere ao reconhecimento ou não da vinculação das relações privadas aos direitos fundamentais, quanto aos seus efeitos (mediatos/imediatos) e aplicabilidade (indireta/direta). Quando do reconhecimento da eficácia, seus efeitos e aplicabilidade, trava-se ainda interminável debate sobre a sua positivação na Constituição.


Diante da teoria da eficácia diagonal dos direitos fundamentais e dos bons argumentos trazidos pelo chileno Sérgio Contreras, acreditamos que seja de extrema valia a observação e o respeito a esta nova teoria, que assim como as demais, enfrentará árduas discussões jurídicas e políticas.


Forçoso observarmos a evolução e o desenvolvimento gerados para sociedade e para os direitos fundamentais com o reconhecimento da teoria da eficácia horizontal, assim, devemos considerá-los para o futuro reconhecimento da eficácia diagonal, pois esta teoria também pode ser fonte de evolução e desenvolvimento.

Nesse sentido, pensamos que uma mera ramificação da eficácia horizontal, poderá vir a ser uma nova revolução dos direitos fundamentais, tão importante quanto fora revolução trazida pela eficácia horizontal.

 

 

5. REFERÊNCIAS

 

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BAGGIO, Roberta Camineiro; MARQUES, Stanley Souza. Vinculação dos particulares a Direitos Fundamentais: breves considerações da Filosofia Constitucional. Revista Direito e Práxis Vol. 4, n. 7, 2013, pp. 242-266. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/viewFile/5856/6390 > Acesso em: 19 de jan. de 2024.

 

BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. V. uni. São Paulo: Malheiros, 2004

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 10 de jan. 2024.

 

CONTRERAS, Sergio Gamonal. Cidadania na empresa e eficácia diagonal dos direitos fundamentais – São Paulo: LTr, 2011.

 

COSTA, Marcelo Freire Sampaio. Eficácia dos direitos fundamentais entre particulares: juízo de ponderação no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2010.

 

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FILHO, Willis Santiago Guerra. A doutrina dos princípios jurídicos e a teoria dos direitos fundamentais como partes de uma teoria fundamental do direito. p. 103. IN Revista de Direito do estado. Rio de janeiro: Renovar, 2006.

 

GARCIA, Bruna Pinotti; LAZARI, Rafael de. Manual de Direitos Humanos. Vol único, Salvador: Editora Juspodivm, 2014.

 

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2014.

 

MARQUES, Clarissa. Direitos Humanos: Nota de Uma Concepção Interdisciplinar. In: Direitos humanos e fundamentais em perspectiva. BRANDÃO, Claudio Roberto Cintra (org.). São Paulo: Editora Atlas 2014. p. 151 – 168.

 

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008.

 

POLIPPO, Micheli. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. Revista Eletrônica Direito e Polítiva, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.3, n.3, 3º quadrimestre de 2008. Disponível em: < http://siaiap32.univali.br/seer/index.php/rdp/article/view/7336/4176 > Acesso em: 10 de jan. 2024.

 

SAMPAIO, José Adércio Leite. Teoria da Constituição e dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013.

 

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

 

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SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

 

___________. A ponderação de Interesses na Constituição Federal. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002.


[1] Caso Lüth, (CONTRERAS, 2011, p. 21): Eric Lüth convocou os alemães a boicotarem o último filme de veit harlan (filme antissemita, gravado durante o governo Hitler), a produtora cinematográfica ajuizou ação contra Lüth, alegando que o boicote teria ferido aos bons costumes, saindo vencedora em primeira e segunda instância. Inconformado, Lüth recorreu ao Tribunal Constitucional, que, entendeu que fora ferida a sua liberdade de expressão, ou seja, as decisões anteriores não observaram a lei sob a ótica dos direitos fundamentais, reconhecendo a eficácia horizontal dos direitos fundamentais entre particulares.

[2] Caso kraemer, (CONTRERAS, 2011, p. 21): Proprietários de um condomínio particular quiseram impedir que pessoas negras adquirissem propriedade no local. “A Suprema Corte Americana decidiu que, embora a cláusula de restrição fosse válida, os tribunais não a poderiam aplicar, uma vez que no momento em que um tribunal corroborasse com a execução de um contrato como desse tipo se estaria diante de um ato estatal (state action) e, assim, no âmbito abrangido pela XIV emenda.”

[3] Para o autor, como exemplo dessa realidade (incidência de direitos fundamentais em relações particulares), cláusulas contratuais que impedem a sublocação de um imóvel para pessoas de determinada raça ou cor.

[4] Constituição da República Portuguesa: Art. 18 – 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

[5] Constituição da Confederação Suíça: Art. 35 -3. As autoridades zelam que os direitos fundamentais, à medida que se mostrem adequados para tanto, também se tornem ativos entre particulares.


 

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Esse artigo pode ser utilizado parcialmente em livros ou trabalhos acadêmicos, desde que citado a fonte e autor(es).



Como citar esse artigo:


REIS, Renato Madeira; BRITO, Maria de Betânia Sousa. A vinculação dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica das teorias de eficácia. Revista QUALYACADEMICS. Editora UNISV; v.2, n.6, 2024; p. 83-104. ISSN 2965976-0 | D.O.I.:  doi.org/10.59283/unisv.v2n6.007



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